Meu nome é Rosemeire, tenho 36 anos, sou professora da rede pública de ensino e trabalho em uma escola situada na região metropolitana de Belo Horizonte. Atuo em dois turnos e passo, em média, 12 horas por dia fora de casa. Essa rotina extensa é necessária para assegurar o sustento do meu lar e proporcionar à minha filha uma vida digna. E, quando falo em dignidade, não me refiro a luxo, mas ao atendimento das necessidades básicas.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Sou mãe da Júlia, que tem atualmente 9 anos. Resido distante da minha família, devido à necessidade de me estabelecer próxima ao trabalho, buscando equilibrar da melhor maneira possível minha carreira com os cuidados diários e completos em relação à minha filha.
Não se apoia em redes de apoio. E, ainda que essa estrutura estivesse disponível, ela nunca substituiria o papel do pai. É importante valorizar a ajuda solidária de parentes ou amigos, mas é igualmente fundamental reconhecer que o envolvimento paterno não é um favor — é um dever legal, emocional e humano.
LEIA TAMBÉM!
Sou a única responsável por todas as questões da casa, da saúde, da educação e do bem-estar da Júlia.
Redijo esta carta como um ato de resistência e esperança. Almejo expressar a experiência de inúmeras mulheres que, como eu — embora em diferentes circunstâncias e realidades — sofrem cotidianamente com as consequências do desapego paterno.
É um problema social negligenciado, porém com grande impacto no desenvolvimento emocional das crianças e que impõe uma carga excessiva e desgastante a inúmeras mulheres que educam seus filhos sozinhas em todo o Brasil.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Pai uma vez por mês
Após o meu divórcio do pai da minha filha, que ocorreu quando ela tinha apenas 1 ano e 6 meses, ele não se envolveu de fato na sua vida. Nos primeiros anos, o contato acontecia somente devido à minha insistência, acreditando que minha filha tinha um direito básico de preservar uma ligação com o pai.
Entretanto, nos últimos dois anos, essa ligação se restringiu a um dia de visita por mês, quando ela a busca pela manhã e a devolve ao final do dia.
Por um dia, ele assume o papel de pai. Documenta o instante com fotografias, divulga nas redes sociais e constrói uma narrativa pública que não corresponde à realidade. Na sua rotina diária, permanece em silêncio. Não se envolve, não demonstra interesse, não acompanha a escola, a saúde, as emoções ou a rotina da filha. É uma presença passageira, quase mística, e, contudo, socialmente aceita.
Ao solicitar sua ajuda – seja para acompanhar consultas médicas, participar de apresentações escolares ou lidar com outras questões relacionadas à filha – a resposta usual é: “não posso”.
A falta do pai não é meramente simbólica, é real. As crianças são as mais afetadas por isso. Júlia, por exemplo, já buscou atendimento psicológico para enfrentar a dor da ausência. Ela já me perguntou por que o pai não a vê com mais frequência e chegou a expressar o desejo de que eu me casasse novamente para ter “outro pai”.
As mulheres que exercem a maternidade sem apoio paterno, assumem responsabilidades diárias e intransferíveis, como saúde, educação, alimentação, acolhimento emocional, rotina, segurança e todas as decisões importantes relacionadas aos filhos.
Essa sobrecarga, vivenciada por milhões de brasileiras, tem gerado crises de ansiedade, exaustão física e emocional, além de um sentimento persistente de abandono – tanto como mães, quanto como mulheres.
Reduzir o abandono.
De acordo com dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2024), o Brasil possui aproximadamente 11,3 milhões de famílias lideradas por mulheres. Frequentemente, essas mulheres lidam com a falta de participação paterna, tanto emocional quanto econômica, e esforços de diálogo e engajamento nem sempre provocam alterações no comportamento dos pais ausentes.
A sociedade, por sua vez, normaliza esse desamparo. As políticas públicas o negligenciam. E o fardo recai sobre nós, que permanecemos invisíveis aos olhos do Estado e, frequentemente, da Justiça.
O descaso afetivo é, de fato, uma quebra de direitos. A Constituição Federal, em seu artigo 227, determina que é responsabilidade da família, da sociedade e do Estado garantir à criança, com máxima prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) consolida essa obrigação em seu artigo 4º, determinando que esses direitos são responsabilidade compartilhada entre pais, Estado e sociedade. Já “Às pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda o dever de cumprir e fazer cumprir os direitos da criança e do adolescente”.
Pais que deliberadamente e repetidamente deixam de cumprir suas responsabilidades, mesmo quando possuem as condições necessárias, infringem diretamente essas normas legais. Apesar de frequentemente desconsiderado pelas instâncias judiciais, o abandono emocional tem sido cada vez mais admitido pelos tribunais brasileiros como passível de reparação por danos morais.
Contudo, ainda precisamos nos questionar:
Qual é, em última análise, a função do pai?
A sociedade em que vivemos reproduz a ideia de um pai distante e idealiza a gratificação financeira. Considera-se que o pagamento de pensão é um ato de responsabilidade adequado, embora os filhos necessitem, além do dinheiro, de laços afetivos, atenção, carinho e companhia.
Criar filhos sozinha não é heroísmo. É cansaço. É a falta de escolhas. E ainda há quem pergunte: “mas ele paga pensão?”, como se isso bastasse. Como se uma transferência bancária pudesse substituir o tempo de qualidade, os colo, os abraços, as conversas nas madrugadas difíceis, a presença nas reuniões da escola, nos aniversários e nas doenças.
É pior quando esse valor é insignificante e repetitivo, o que força as mulheres a trabalharem em excesso e, consequentemente, a se ausentar dos próprios filhos. Elas sofrem em dobro: pela falta do pai e pela ausência da mãe que precisa sustentar a família.
Uma das justificativas recorrentes para a falta de presença paterna é que “o amor não se obriga” ou “ninguém pode ser forçado a ser pai”. Apesar de parecerem um apelo à liberdade e à espontaneidade dos sentimentos, essas afirmações revelam uma visão simplista e injusta da paternidade.
A paternidade não é apenas uma questão de amor ou desejo passageiro, mas um compromisso legal, ético e social. A Constituição Federal, o ECA e o Código Civil estabelecem que o pai possui responsabilidades em relação ao filho – não somente financeiras, mas também emocionais, educacionais e de participação ativa na vida da criança.
Se tratasse apenas de “amor espontâneo”, estaríamos negligenciando a relevância do cuidado, da responsabilidade e do compromisso contínuo que uma criança necessita. Crianças não vivem unicamente de sentimentos, mas também de ações concretas – alguém que as ampare, cuide, esteja presente, proteja e eduque.
Após oito anos de maternidade sem apoio, posso declarar que meu tempo de descanso é praticamente nulo, restrito a algumas horas em um mês. Nesse curto período, me esforço para lembrar que, além de mãe, sou mulher – uma pessoa que também necessita viver sua vida social, cuidar da saúde física e mental e alimentar suas emoções. Essas necessidades são essenciais e não podem ser negligenciadas.
No entanto, a responsabilidade pela criação dos filhos ainda recai quase que exclusivamente sobre as mulheres, enquanto os pais ausentes permanecem impunes, protegidos por uma cultura que naturaliza sua ausência.
Abuso de poder estatal.
Essa perspectiva equivocada, que atribui a culpa unicamente a nós e nega nossas habilidades, infelizmente se encontra até em ambientes onde o apoio deveria ser a principal preocupação.
Em abril de 2024, realizei uma consulta com um neuropediatra para avaliar uma suspeita de déficit de atenção. O encontro transformou-se em um incidente de violência institucional.
Ao tomar conhecimento de que era única responsável pela criação da minha filha, o médico ignorou qualquer avaliação diagnóstica e começou a proferir declarações discriminatórias: alegou que “crianças sem figura masculina em casa tendem ao fracasso” e que “a autoridade no lar pertence ao homem”. Comparou o papel do pai ao domínio dos machos no reino animal e afirmou que “a mulher não é autoridade em ambiente familiar”.
Ele propôs que minha filha pudesse ter deficiência intelectual e que, caso fosse constatado, “não haveria tratamento”. Tudo isso foi expresso diretamente a ela, sem demonstração de atenção, compaixão ou delicadeza.
Saí daquela consulta emocionalmente abalada. Denunciei o ocorrido — por preconceito de gênero e violência psicológica — não apenas por mim, mas por todas as mulheres que já foram submetidas a esse tipo de julgamento disfarçado de opinião médica.
Este episódio é emblemático: demonstra como o preconceito contra a maternidade solitária não está restrito ao senso comum. Ele circula com força nos discursos institucionais e reforça uma lógica perversa que associa a ausência de um pai à falência da estrutura familiar — quando, na realidade, o que fracassa é a corresponsabilidade.
As mulheres são frequentemente cobradas por assumir responsabilidades múltiplas, e a autoridade que demonstram com carinho e participação é frequentemente questionada. Já os pais ausentes não recebem nenhuma objeção, nem são colocados em dúvida.
Quem cuidará por nós?
Quem defenderá as políticas públicas de acolhimento, proteção e justiça? Quantas mulheres que criam seus filhos sozinhas ainda precisarão adoecer em silêncio até serem realmente reconhecidas?
Qual seria a solução para essa realidade dolorosa — ou a única saída seria mesmo educar uma nova geração de homens? Homens com uma visão de mundo antimasculina, que compreendam que paternidade não se resume a pensamentos, mas inclui cuidados, presença, vínculo e amor.
Compartilho minha experiência, mas também a de inúmeras outras mulheres que enfrentam as mesmas dores, invisibilidade e sobrecarga. Mães que batalham diariamente para criar seus filhos sem apoio, frequentemente com o coração partido, porém com a determinação de quem não pode ceder.
É hora de abandonar a romantização do abandono. É necessário deixar de encobrir a realidade da situação. Necessitamos e demandamos ser consideradas. O abandono afetivo é concreto. É destrutivo. E deve, com urgência, ser encarado como uma questão de justiça, de saúde mental e de direitos humanos.
Rosemeire Cardoso é professora da rede pública de ensino na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente reflete a linha editorial do jornal.
Fonte por: Brasil de Fato