A eleição de Leão XIV representa uma derrota para os conservadores e indica uma continuidade discreta do reinado de Francisco
Segundo o socióJorge Alexandre Alves, do Movimento Fé e Política, o legado do argentino demonstra que não deverá haver novamente um “príncipe da igreja”.

Os primeiros sinais do Papa Leão XIV, eleito nesta quinta-feira 8, apontam para uma continuidade da atuação do Papa Francisco, o que representa um revés para os conservadores da Igreja Católica que almejavam uma ruptura com os 12 anos do jesuita argentino. A avaliação é do socióJorge Alexandre Alves, professor do IFRJ/Campus Duque de Caxias e membro do Movimento Fé e Política no Rio de Janeiro.
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O cardeal Robert Prevost, norte-americano, é considerado mais progressista que outros cardeais dos Estados Unidos, frequentemente vistos como conservadores e contrários a Francisco. Aos 69 anos, assume o papado com a reputação de moderado, porém fiel ao seu antecessor.
Prevost dedicou um terço de sua vida nos Estados Unidos e o restante entre a Europa e a América Latina. Foram quase duas décadas no Peru, onde se tornou arcebispo emérito de Chiclayo. Deixou o país para se juntar ao governo do Vaticano, onde chefiou o Dicastério para os Bispos, com a importante tarefa de aconselhar o papa sobre a nomeação de líderes da Igreja. Em 30 de setembro de 2023, Francisco o elevou ao posto de cardeal.
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Inicialmente, a mensagem desse encontro é que os conservadores não alcançaram a eficiência desejada em suas intenções, avalia Jorge Alexandre Alves em entrevista à CartaCapital. Parece ser uma derrota do campo conservador do catolicismo, nesse sentido.
O professor considera a transição de Francisco para Prevost como uma “continuidade discreta”: firme nas questões mais importantes, mas comedida no dia a dia. Os estilos de ambos são distintos, conforme já sinalizou o padre Michele Falcone: “Ele não comete excessos. Abençoar bebês, sim. Pegá-los no colo, não”.
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Acompanhe os destaques da entrevista com Jorge Alexandre Alves.
CartaCapital: Essa decisão representa uma continuidade em relação a Francisco?
Jorge Alexandre Alves: Inicialmente, sugere-se uma sequência, embora não haja uma figura com a extravagância de Francisco. Até o momento da minha investigação, conversando com membros da Ordem Agostiniana com quem ele conviveu, é uma pessoa reservada no trato íntimo, porém muito determinada.
Recebi uma foto dele em uma live com a imagem de Dom Óscar Romero, bispo em El Salvador assassinado pela ditadura salvadorenha. É considerado o grande mártir da Teologia da Libertação na América Latina. E o Papa Francisco o canonizou, atualmente conhecido como São Romero de América.
Prevost: o que o nome indica?
O JAA não é um Francisco II, mas o nome indica uma continuidade nesse programa. Acredito que será um pontificado com muita ênfase nas questões sociais, porque remete a Leão XIII, que fez o primeiro movimento de abertura da igreja em relação à modernidade e ao mundo do trabalho. Ele escreveu uma encíclica muito importante naquele tempo [a Rerum Novarum, de 1891] e, na verdade, fundou a Doutrina Social da Igreja.
Existe outro elemento subjacente no nome, devido ao fato de Frei Leão ter sido o melhor amigo de Francisco de Assis. Assim, por analogia, podemos referir-nos ao Leão de Assis e ao Leão de Roma.
A seleção dos cardeais considerou um indivíduo com experiência na cúria, mas prevaleceu a sua vasta experiência em uma pequena diocese com população majoritariamente indígena no Peru, onde atuou como bispo por muitos anos.
Ele é americano, porém se identifica muito mais com a América do Sul. Nesse contexto, a América Latina teve dois papas consecutivos, o que representa um sinal relevante para a Igreja.
Qual foi a sua reação ao resultado das eleições?
A escolha e o nome me trouxeram alívio inicial. Posteriormente, senti grande satisfação com a maneira como foi apresentado na sacada da Basílica de São Pedro.
Após o conclave, foi aplaudido pelos outros cardeais, vestindo paramento vermelho, típico dos papas em sua primeira aparição, e utilizou sapato preto.
Ele apresenta sinais muito positivos. Também parece ser um contraponto a Donald Trump e ao império das armas, pois seu discurso menciona “uma paz desarmada e desarmante”.
Não se sabe se ele apresentará alguma palavra tão ousada quanto a de Francisco em relação, por exemplo, à questão LGBT+. Ele nunca fez uma declaração pública em relação a isso. Fez uma afirmação no passado [em 2012, dirigida a bispos]. Contudo, será necessário incluir esse tipo de declaração na mesma categoria das de Francisco quando era arcebispo de Buenos Aires, em outra conjuntura eclesial.
A igreja envia qual mensagem com a seleção da Prevost?
O campo conservador buscava, admitindo sua menor representatividade e falta de capacidade de indicar um papa, tentar redirecionar a Igreja ao caminho seguido até então por Bento XVI, buscando uma candidatura moderada que lhe permitisse influenciar a produção de papas e, a partir daí, obter algumas concessões.
A formação de Prevost não se insere na linha da Teologia da Libertação. Sua formação acadêmica é do direito canônico, e usualmente quem segue essa área do direito canônico tem uma teologia mais conservadora.
Os relatos indicam uma pessoa humilde, que ouve bastante e aprecia o consumo de vinho. Há uma fotografia dele servindo sua própria comida em um evento religioso. Trata-se de alguém que não demonstra postura pomposa, diferente de muitos cardeais.
Ele manteve uma postura firme nas questões importantes, porém mais reservada no dia a dia. Ele também demonstrou consideração pelo ambiente da Cúria Romana ao utilizar vestimentas que o Papa Francisco havia rejeitado.
Quais medidas ele tomará? Haverá redução na velocidade das reformas na Cúria? Não sei, mas posso garantir que os ultracatólicos norte-americanos pressionaram de diversas maneiras.
CC: Como assim?
A visita do vice-presidente norte-americano [JD Vance] ao Papa Francisco não se restringiu a uma busca por uma bênção de Páscoa de seu líder religioso. Existiam outros interesses e manobras envolvidos.
Embarcaram em uma jornada de peregrinação empresários católicos dos Estados Unidos, que promoveram diversos encontros com alimentação requintada e vinhos de alto valor. A participação de alguns cardeais foi confirmada.
Descobri que um dos empresários afirmou que aquele tipo de reunião poderia resultar em mais de um bilhão de dólares em doações para a igreja, desde que se escolhesse o “papa certo”. Tenho a impressão de que não foi escolhido o papa certo na visão desse grupo.
Inicialmente, a mensagem que emana deste encontro é que os conservadores não demonstraram a eficácia desejada em suas propostas e que não ocorrerá o retorno esperado por muitos, especialmente nos ambientes digitais, que amplificam vozes com pouca representatividade. Parece ser uma derrota para o campo conservador do catolicismo, nesse aspecto.
O que o fato de Prevost ser agostiniano revela?
Agostinho foi um importante teósendo a base fundamental da teologia cristã até o presente momento.
O que mais me impressionou no discurso do Papa Leão XIV foi a citação de Agostinho, que lhe pareceu a parte mais bela.
Agostinho foi nomeado bispo de Hipona, cidade que não existe mais, e em certa ocasião afirmou à comunidade: “Para vocês sou bispo, convosco sou cristão”. Essa expressão persiste: “Aquilo é um dever, isso uma graça. O primeiro é perigo, o segundo é salvação”. Assim, ele se coloca como quem caminha junto, representando um recado da teologia dele.
Agora, admito que me senti mais aliviado e comecei a emocionar-me, pois acreditava que seria possível obter um resultado semelhante ao de João Paulo III, Pio XIII ou Bento XVII, o que representaria um retrocesso, um retorno a uma situação que os especialistas em catolicismo contemporâneo denominam de “inverno eclesial”, período de quase 35 anos dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI.
Quais serão os principais desafios da Igreja no novo pontificado?
A JAA considera, em termos internos, que o principal desafio reside na questão da pedofilia, dos abusos sexuais cometidos pela Igreja, da existência de membros do clero com vidas duplas e na forma como essa situação será abordada.
Há uma acusação no Peru de que ele foi omisso na condução de três casos de pedofilia envolvendo padres de sua diocese, mas a investigação não foi concluída. Ele suspendeu os padres e encaminhou o caso para o Vaticano, que está dentro da orientação que o Papa Francisco havia imprimido. Anteriormente, ele não aplicava nenhum tipo de punição e apenas transferia o abusador.
É preciso considerar também o seu comportamento em relação ao tema das mulheres no Vaticano, com a discussão que ocorreu no Sínodo para a Amazônia sobre a ordenação de diaconisas, e com a proposta de um novo rito litúrgico na região da Amazônia — propõe-se a exceção para que indígenas casados possam exercer o ministério sacerdotal, por uma questão cultural dessas populações.
Compreendo que, no Brasil, a igreja enfrenta questões relacionadas às indicações episcopais, bem como ao perfil dos candidatos ao episcopado – se são pessoas mais alinhadas com a teologia latino-americana e o Concílio Vaticano II.
A formação sacerdotal ocorre também nos seminários. Diversas pessoas debatem internamente se esse modelo do Seminário Maior ainda é válido, devido à sua constituição a partir de uma necessidade específica do século XVI, no Concílio de Trento. Atualmente, questiona-se se o currículo que os seminaristas recebem é adequado aos desafios do mundo moderno.
Observa-se a questão da paz, da justiça. Verificase se ele dará seguimento às iniciativas da economia de Francisco e Clara. Há também a questão ambiental. Já como cardeal, ele proferiu declarações muito relevantes sobre o tema.
Apresenta-se como alguém com sensibilidade latino-americana, apesar de ter nascido nos Estados Unidos. Isso influencia as discussões, inclusive no enfrentamento da pobreza e da fome.
Existem muitos desafios, mas inicialmente o pontificado está nas mãos de bons líderes e se confirma a revolução que Francisco fez no papado.
João XXIII, o papa que mais se assemelha a Francisco, revolucionou a Igreja com o Concílio Vaticano II. Francisco, inspirado por João XXIII, revolucionou o papado. Essa revolução continuará à maneira particular de Leão, com mais discrição, mais comedimento e uma certa timidez no gesto, mas com muita firmeza de opções.
Raramente teremos um papa “príncipe da igreja” como nos tempos passados.
Fonte: Carta Capital