A Feira Palmares celebra a cultura negra e fortalece a mobilização em favor da criação do Museu do Negro em Porto Alegre
No sábado, 2, ocorreu um evento que combinou arte, cultura, memória e afroempreendedorismo no Largo Zumbi dos Palmares.

Com o objetivo de retomar a vida cultural da cidade após as enchentes, o Festival Feira Palmares iniciou neste sábado (2) sua nova temporada, que se estenderá até dezembro, com edições mensais no Largo Zumbi dos Palmares. O festival, criado em 2024, promove o encontro entre arte, cultura, memória e afroempreendedorismo, contando com a participação de artistas, ativistas, escritores, educadores e empreendedores negros de diversos territórios do Rio Grande do Sul.
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A cada mês, a comunidade negra se reúne em nosso território, o Largo Zumbi, para celebrar a arte, a cultura negra e a produção negra realizada no Rio Grande do Sul, afirma a rapper Jaqueline Pereira, Negra Jaque, uma das organizadoras do evento. Ela recorda que o festival já teve uma edição especial de arreio junino e agora consolida sua programação regular. Nesta edição, a programação também celebrou a campanha pelo Museu do Negro.
“Do Zumbi ao Museu do Negro”
Para Negra Jaque, o festival e o museu representam espaços essenciais para “construir narrativas positivas da comunidade negra” e resgatar a memória ancestral. “É um lugar sagrado. A história negra no estado do Rio Grande do Sul precisa ser contada. É uma referência tanto para a comunidade negra quanto para a não negra, para que todas as pessoas conheçam essa história.”
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Ela ressalta a relevância dos símbolos, como a estátua de Zumbi dos Palmares na praça e a de Oliveira Silveira, que será construída na Praça da Alfândega. “São pessoas que trabalharam pelo bem-estar da população negra. Valorizar essas figuras e tantas outras que estão fazendo hoje muita coisa pela cidade e pelo estado é importante para as próximas gerações. Talvez a gente nem veja o impacto agora, mas o que está sendo feito hoje é para o futuro.”
A exposição para empreendedores negros que integra a feira foi intencionalmente organizada para conduzir o público da estátua de Zumbi ao local onde se encontra a instalação do museu. “Este caminho foi intencional. Estamos muito satisfeitos com o que está ocorrendo. Aqui, a maioria são mulheres negras que trabalham durante a semana em empregos com carteira assinada e vêm para as feiras nos finais de semana para complementar sua renda. É muito importante ter um espaço estruturado para receber essas mulheres.”
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A disputa pelo Museu do Negro é um marco na história do Brasil, representando a busca por reconhecimento e valorização da cultura afro-brasileira.
A vereadora Karen Santos (Psol), presente no evento, ressaltou a articulação política e jurídica em torno da reivindicação da sede da antiga Epatur, situada no Largo Zumbi, para abrigar o Museu do Negro. “Esta é uma lei de 2015 que nunca foi implementada por nenhum governo. Estamos aqui celebrando, mas também reivindicando esse espaço para ser um local digno de memória e história do nosso povo.”
Para ela, o museu será fundamental como espaço de registro e visibilidade. “A gente tem uma contribuição enorme no Carnaval, nos quilombos urbanos, na literatura negra. O terreiro, o batuque do Rio Grande do Sul, também precisa ter um espaço de exposição. Acredito que esse museu não vai apenas resgatar nosso passado, mas também projetar o afrofuturismo, novas possibilidades de vivência para o nosso povo.”
Cosméticos, literatura e afetividade.
Patrícia Fogast, fundadora da marca Melanina e Mel Cosméticos para Cabelos Afros e Maquiagem para Peles Negras, estava entre as expositoras da feira. Ela participa do festival desde a primeira edição. Após 20 anos trabalhando em recursos humanos (RH), decidiu mudar de vida. “Passei duas décadas sendo insatisfeita, sem poder ser quem realmente sou. A Melanina e Mel me deu a oportunidade de mostrar que sim, temos cosméticos voltados para nossas necessidades. Não precisamos consumir de um mercado que não nos entende.”
Lançada em abril de 2024, a marca visa fortalecer a autoestima e a identidade. “Mesmo diante das adversidades, nunca considero retornar à CLT. O empreendedorismo negro também é uma rede de apoio e um propósito de vida.”
A escritora e contadora de histórias Simone Cristina Reis também confirmou sua presença. Com 45 anos, Simone abordou os desafios da literatura negra no estado: “É um trabalho árduo porque somos poucas. As editoras não nos valorizam, então muitas vezes fazemos trabalhos independentes”.
Ela apresentou seu livro infantil Alice, o Unicórnio Encantado, desenvolvido a partir de sua experiência como bibliotecária em São Leopoldo. “Os livros que chegavam tinham poucas crianças negras ou as representações eram estereotipadas. Criei este livro pensando na representatividade. Ele traz bonecas negras, instrumentos musicais, mapa do continente africano, turbantes, grafismos e até a mudança de penteado, que é um desafio para muitas meninas negras na escola.”
Segundo Reis, a leitura deve ser incentivada com o apoio da família e da comunidade. “A criança não vai sozinha atrás do livro. Ela precisa de estímulo. A diversidade desde cedo favorece a equidade racial. A representatividade também nos brinquedos é fundamental. Se uma criança negra só brinca com bonecas brancas, ela entende que o afeto não é para ela. Isso forma subjetividades desde cedo.”
O boxe feminino surge como ferramenta de fortalecimento e autonomia feminina.
A técnica de boxe Carla Silva, residente em Esteio, apresentou ao festival sua experiência no trabalho com mulheres desde 2014. “Demonstro como o boxe feminino pode ser uma ferramenta de empoderamento. Frequentemente elas conseguem superar situações difíceis, além de se defender.”
Ela relata que diversas alunas procuram por estética e encontram vantagens para a saúde mental e emocional. Em 2021, Carla passou a utilizar os movimentos do boxe como uma forma de fisioterapia: “Trabalho com mulheres que também passaram pelo câncer. O boxe auxilia na coordenação, na recuperação e na autoestima”.
Silva declara que a maioria das participantes são mulheres negras, trabalhadoras, empregadas domésticas, professoras, enfermeiras. “Elas procuram algo diferente, em um ambiente que ainda é muito masculinizado. Quando identificam que conseguem, se sentem fortalecidas.”
Arte, poesia e luta: a voz da juventude negra trans.
O festival também contou com a Batalha de MCs. Cainã Guiar, 22 anos, rapper e homem trans da comunidade da Cruzeiro, foi a vencedora. “Este festival é muito importante porque nos sentimos acolhidos entre pessoas que têm as mesmas vivências que a nossa. E não só no lugar do sofrimento, mas também da liderança.”
O rapper ainda comentou sobre a relevância de se manifestar através da poesia: “Prezo pelo que digo, pois a arte é também uma maneira de relatar a nossa trajetória. Ao me apresentar no microfone, busco oferecer uma nova visão para indivíduos como eu”.
Ele ressalta a inspiração em lideranças negras, como a vereadora Atena Roveda (Psol) e a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB). “Elas me conhecem desde antes da minha transição. É uma satisfação levar essas inspirações comigo para onde eu for. Sou um artista da quebrada da Cruzeiro, e faço questão de dizer isso para mostrar que podemos ocupar todos os espaços com orgulho da nossa origem.”
Cainã reconhece progressos, porém aponta exclusões contínuas no cenário do Hip Hop no estado. “Ainda estamos buscando inclusão. Como homem trans, negro e periférico, enfrento muitas barreiras. Mas essa união da Batalha da Nação com o festival demonstra que estamos avançando para mudar.”
Fonte por: Brasil de Fato