A fome que não se vê no mapa
O Brasil diminuiu a insegurança alimentar, segundo a ONU, porém a comemoração não alcançou as periferias urbanas, onde crianças, jovens e idosos ainda e…

No Brasil, a fome é medida pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). São quatro níveis, registrados em planilhas do IBGE: segurança alimentar significa acesso regular a refeições adequadas; na insegurança leve, há receio de faltar alimento; na moderada, as refeições diminuem; na grave, há dias sem comer. É técnica. Mas a privação também se mede pelo eco na geladeira.
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Nas áreas periféricas, onde o espaço se configura por autoorganização e falta de serviços básicos, o dia inicia-se antes do amanhecer. A porta da geladeira revela duas garrafas de água, sobras de farinha, um pote de açúcar quase vazio e um ovo. Essa situação reflete 58,7% da população urbana com algum nível de insegurança alimentar, sendo que 28,5 milhões enfrentem a gravidade da situação.
O Brasil celebrou, e não sem tempo, ter deixado o Mapa da Fome em 2024, e com razão. A comemoração não alcançou as periferias, onde crianças, jovens e idosos ainda enfrentem a falta de refeições. Nos domicílios liderados por mulheres, 20,8% sofriam com a insegurança alimentar leve, 6,2% estavam em situação moderada e 4,6% viviam em condição grave.
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Viver afastado do centro aumenta significativamente os custos. O deslocamento diário para o trabalho pode demandar até três horas. Se a renda é proveniente de trabalhos ocasionais, empregos temporários ou outras fontes da informalidade, pode-se obter um salário mínimo. A insegurança alimentar não se limita ao acesso aos alimentos, engloba a distância, o transporte e a falta de serviços públicos. Considerando que 26% das residências não possuem abastecimento regular de água e 34% não contam com coleta de esgoto, preparar arroz deixa de ser uma tarefa simples e se transforma em um desafio logístico.
Em 2025, o Programa de Aquisição de Alimentos prevê R$ 1 bilhão, porém apenas 22% dos municípios integram o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Isso indica que os governos não priorizam a conversão de políticas em acesso à alimentação. Para famílias como a de dona Izabel, os alimentos chegam antes dos relatórios e, frequentemente, o benefício sequer é solicitado.
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Ainda assim, emergem ações locais: hortas comunitárias, cozinhas coletivas, bancos de alimentos e redes de troca, originadas do saber de quem reside nessas áreas, formando uma rede de soluções locais que poderiam ter maior espaço nas decisões sobre políticas de abastecimento. Políticas amplas nem sempre correspondem às realidades locais.
A carência atual define o Brasil de 2030. Em breve, o contingente de idosos ultrapassará o de crianças de zero a 14 anos, segundo o Ministério da Saúde. Cada criança subnutrida se tornará um adulto com menor capacidade produtiva em um país que precisará sustentar uma população envelhecida. Superar a insegurança alimentar exige mais que indicadores internacionais: significa reconhecer que famílias que escolhem entre transporte e alimentação vivem um problema presente e preparam, sem querer, uma crise futura.
O desafio não é apenas assegurar refeições no presente, mas sim construir a base humana do país que desejamos a partir de 2030. Isso implica transformar as estruturas que perpetuam a exclusão, compreendendo que, se a privação tem endereço, nome e sobrenome, as soluções também precisam ter. O tempo é curto: as crianças que hoje enfrentam a carência alimentar serão os jovens de 2030. Que país estamos escolhendo construir?
Fonte por: Jovem Pan