A história dos transplantes de órgãos em animais: um panorama da evolução
A prática era vista como experimental há apenas meio século.

Nos Estados Unidos, foram realizados mais de 48 mil transplantes de órgãos no ano passado. Atualmente, são procedimentos frequentes, porém a prática era vista como experimental há apenas meio século.
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Nos anos anteriores, os transplantes quase sempre utilizavam órgãos humanos. Atualmente, experimentos iniciais em xenotransplante – transplante de órgãos de animais em humanos – estão abrindo perspectivas para salvar vidas.
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Os animais são a solução?
O transplante de órgãos, a prática de transplantar órgãos entre espécies, é um conceito que existe há centenas de anos.
No início do século XX, o médico Mathieu Jaboulay concretizou a ideia através de uma das primeiras tentativas documentadas de fazer um órgão animal funcionar em um ser humano. Em 1906, em Lyon, França, Jaboulay conectou um rim de porco ao cotovelo de uma mulher de 48 anos, optando por esse local devido à sua facilidade de acesso.
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O fluido sanguíneo passou pela bexiga, e o órgão produziu urina, algo que até mesmo algumas dores humanas naquele período não conseguiram provocar, segundo os estudos. A bexiga do porco falhou rapidamente, e a paciente faleceu em seguida por conta de uma infecção.
A ausência de acesso imediato a órgãos humanos sempre foi uma espécie de objetivo inatingível, possuir algo em estoque que não demandasse a morte de um ser humano para que outro pudesse viver, afirmou Jeffrey Stern, membro sênior da equipe de xenotransplante do NYU Langone Transplant Institute. “Claramente, animais representam uma versão ideal disso.”
O primeiro transplante humano bem-sucedido
Em 1954, o primeiro transplante bem-sucedido de órgão humano a nível mundial foi realizado pelo Dr. Joseph E. Murray no que atualmente é conhecido como o Hospital Brigham and Women’s em Boston.
Murray removeu um rim de Ronald Herrick, de 22 anos, e transplantou-o em Richard Herrick, seu gêmeo. Devido à sua identidade, o sistema imunológico de Richard reconheceu o novo órgão como próprio, evitando a rejeição do órgão estranho. Richard Herrick viveu mais oito anos, e seu irmão doador não apresentou efeitos colaterais nocivos.
“Acredito que isso realmente impulsionou a área”, afirmou o médico Stefan Tullius, diretor da Divisão de Cirurgia de Transplante do Hospital Brigham and Women’s. “O que demonstrou é que, se se tem a combinação e a relação adequadas entre doador e receptor, então é possível realizar um transplante e que ele irá funcionar”, acrescentou Tullius.
Ainda que os medicamentos imunossupressores não estivessem disponíveis, os experimentos de transplante apresentaram resultados apenas com gêmeos cujos sistemas imunológicos reconheciam o órgão estranho como próprio. “Você ainda enfrentava todos esses problemas com o sistema imunológico pelos 30 anos seguintes”, afirmou Stern, que também é professor assistente no Departamento de Cirurgia da NYU Grossman School of Medicine. “Nem todos têm um gêmeo idêntico.”
Precisando de mais doadores.
Na década de 1960, Murray demonstrou em diversos experimentos com cães que um transplante de órgão seria mais bem-sucedido se o receptor recebesse medicamentos para suprimir o sistema imunológico após o procedimento, a fim de reduzir as chances de rejeição.
Em abril de 1962, com base no conhecimento adquirido através de seus experimentos, Murphy realizou o transplante de um rim de um doador falecido em um indivíduo não relacionado que recebeu um imunossupressor chamado azatioprina.
O paciente sobreviveu por mais de um ano, e o tempo de sobrevida se elevou ainda mais após os médicos perceberem que um imunossupressor apresentava melhor resultado quando administrado em combinação com a prednisona.
Em junho de 1963, o pesquisador Murray, o cirurgião belga Guy Alexandre, conduziu a primeira operação de transplante de um doador com morte cerebral, um procedimento questionado na época. Alexandre buscava um rim para um paciente com insuficiência renal quando uma mulher que sofreu um acidente de carro foi levada ao seu Hospital Saint-Pierre em Bruxelas. Seu coração estava em funcionamento, porém não havia sinais de atividade cerebral.
Consciente de que os órgãos perdiam viabilidade após a parada cardíaca do paciente, Alexandre obteve autorização de seu superior para realizar o transplante do rim da mulher para o paciente com insuficiência renal. O receptor sobreviveu por 87 dias.
Alexandre, em anos posteriores, conduziu secretamente outros transplantes renais, empregando doadores com morte cerebral, para avaliar se essa metodologia prolongaria a sobrevida em relação a transplantes de doadores cujos corações haviam cessado de funcionar. Ele compartilhou suas experiências em uma conferência médica alguns anos depois, recebendo reações diversas.
Somente em 1968 uma comissão da Faculdade de Medicina de Harvard publicou sua recomendação de que a perda irreversível da função cerebral – anteriormente denominada “coma irreversível” – representaria um novo critério para a morte. Após isso, transplantes envolvendo doadores com morte cerebral se tornaram mais frequentes, ampliando significativamente o volume de órgãos disponíveis. “Desenvolver a definição de morte cerebral como alternativa à morte cardíaca – a interrupção da circulação sanguínea – foi notável, pois possibilitou a obtenção de órgãos”, afirmou Tullius.
Experimentação e avaliação de resultados.
Cirurgiões transplantologistas iniciaram os experimentos com rins devido à capacidade humana de possuir dois e sobreviver com apenas um. Os pacientes também contavam com a alternativa da diálise em caso de falha do transplante. No entanto, à medida que os médicos adquiriam mais conhecimento, aumentava sua confiança na realização de transplantes de outros órgãos.
No final da década de 1960, iniciaram-se experimentos com fígado e pâncreas, e em 1967, o cirurgião sul-africano Christiaan Barnard, do Hospital Groote Schuur na Cidade do Cabo, efetuou o primeiro transplante de coração. Ele transplantou o coração de um jovem de 25 anos para um merendeiro de 53 anos que estava sofrendo de doença cardíaca crônica.
O mercenário faleceu 18 dias após, em decorrência de uma infecção pulmonar, porém o coração continuou a bater até seu falecimento. O segundo paciente de Barnard em transplante cardíaco permaneceu vivo por quase 19 meses. Seus quinto e sexto pacientes viveram por cerca de 13 e 24 anos, respectivamente.
Na década de 1990, imunossupressores como ciclosporina e tacrolimus ampliaram as opções para transplantes de múltiplos tecidos. Em 1998, Jean-Michel Dubernard realizou o primeiro transplante cirúrgico de mão em Lyon, França. Em 2005, ele e Bernard Devauchelle realizaram o primeiro transplante parcial de face para Isabelle Dinoire, uma mulher que sofreu perda de parte do rosto em um ataque de cão. Em 2010, uma equipe espanhola liderada pelo médico Juan Barret efetuou o primeiro transplante total de face.
“Houve os primeiros 30 anos de transplante em que tudo era bastante experimental, certo?” disse Stern. “Não era um empreendimento comum como o que fazemos atualmente, e foi muito de tentativa e erro e sobrevivência, e todo o campo do transplante, eu acho, era muito restrito nisso. Foi a adaptação e invenção de novas tecnologias que permitiram que o transplante se tornasse comum.”
Bêê Fae
Em 1984, o médico Leonard Bailey tentou salvar a vida de Stephanie Fae Beauclair na Universidade Loma Linda, na Califórnia. A criança, conhecida como “Baby Fae”, nasceu com uma condição cardíaca fatal, e Bailey, que realizava experimentos com transplantes entre espécies em animais, obteve autorização para transplantar um coração de macaco. Stephanie viveu por apenas 21 dias, mas o caso despertou maior atenção sobre a necessidade de doações de órgãos infantis e a viabilidade do transplante entre espécies.
Eventualmente, os cientistas decidiram que os primatas, apesar de serem os parentes evolutivamente mais próximos dos humanos, não eram os melhores doadores de órgãos. “Os primatas se mostraram muito pequenos, muito caros e muito controversos”, afirmou o especialista em ética médica Art Caplan, que trabalha com casos de transplante na NYU.
Havia, inclusive, preocupação com infecções. Primatas não humanos podem transmitir uma variedade de patógenos que não são nocivos para eles, porém que podem provocar doenças em humanos, como o vírus Marburg e o HIV.
Com o tempo, os cientistas identificaram que os porcos representavam uma alternativa mais adequada: apresentam semelhanças anatômicas com os humanos, possuem alta taxa de reprodução e o risco de doenças transmitidas de animais para humanos é menor.
A tecnologia que recebeu o prêmio Nobel.
O estudo do xenotransplante ficou paralisado até o surgimento da tecnologia de edição genética CRISPR no início dos anos 2000.
Essa tecnologia premiada com o Nobel permitiu aos cientistas modificar o genoma suíno, tornando-o mais compatível com o humano, incluindo a remoção de sequências-chave no DNA suíno que causariam rejeição quase automática de órgãos em pessoas. Unindo isso a técnicas de clonagem, os cientistas obtiveram a oportunidade de manter uma genética consistente e produzir doadores suínos universais.
A clonagem e a aplicação do CRISPR, com a possibilidade de edição genética, estão realmente permitindo não apenas o transplante, mas também é relevante para outras áreas da medicina, afirmou Tullius. “Eu colocaria isso na categoria revolucionária”.
Mais próximo.
Rins de porcos geneticamente modificados foram transplantados para um paciente em estado de morte cerebral no NYU Langone, em setembro de 2021, após já terem sido utilizados em experimentos com primatas não humanos.
O rim foi ligado aos vasos sanguíneos na parte superior da perna do paciente, fora do abdômen, por 54 horas, durante o estudo realizado pelos médicos. O órgão apresentou funcionamento tão bom quanto um transplante de rim humano, e os profissionais não observaram sinais de rejeição.
“Aprendemos mais com isso do que com qualquer outra coisa que fizemos”, declarou Robert Montgomery, um dos cirurgiões que realizou o procedimento, ao correspondente médico-chefe da CNN, Sanjay Gupta. “Foi realmente a base de como conseguimos descobrir como tratar a rejeição em nossos pacientes vivos”.
A família concedeu graciosamente sua autorização para a doação do corpo de seu ente querido para este procedimento. Essa notável generosidade possibilitou um importante avanço na criação de um suprimento sustentável de órgãos que salvam vidas e, com isso, espera-se romper com o modelo atual em que alguém precisa falecer para que outra pessoa possa viver.
Criando história
Em 7 de janeiro de 2022, cirurgiãs da Escola de Medicina da Universidade de Maryland realizaram o primeiro xenotransplante em um paciente vivo.
David Bennett, de 57 anos, não conseguia andar e dependia de um pulmão artificial e máquina de bypass cardíaco para sobreviver. Ele estava muito doente para se qualificar para um coração humano, mas pôde se submeter ao procedimento experimental através da via de uso compassivo da FDA, que permite que pacientes sem outras alternativas tentem tratamentos experimentais. Ele viveu mais dois meses, tendo a chance de passar mais tempo com sua família e assistir ao Super Bowl.
“Assim como em qualquer cirurgia de transplante pioneira no mundo, esta resultou em percepções valiosas que esperamos orientem os cirurgiões de transplante para aprimorar os resultados e possivelmente oferecer benefícios que salvem vidas para pacientes futuros”, declarou seu cirurgião, Bartley Griffith.
Bennett foi o pioneiro de um pequeno grupo de pacientes submetidos a xenotransplante por razões de caridade. Conforme os pesquisadores avançam em direção aos ensaios clínicos, antecipa-se um melhor entendimento da eficácia dos órgãos em condições mais comuns.
A promessa do transplante xenogenico é a esperança para nossos pacientes. Uma esperança para o futuro que por muito tempo foi incerta. É a esperança transformada em possibilidade transformada em realidade. Nossos pacientes podem sonhar novamente com formaturas, casamentos… sobre a vida. A esperança não deveria ter que ser racionada, disse a Dra. Jayme Locke, professora de cirurgia no NYU Langone.
Órgãos personalizados
A estratégia da United Therapeutics, conforme o geneticista David Ayares a define, envolve “múltiplas tentativas”. A empresa iniciará o primeiro estudo clínico de xenotransplante aprovado pela FDA nesta temporada.
“em vez de transplantes compassivos isolados que foram muito valiosos para aprender como otimizar e estender a sobrevida desses pacientes, agora podemos partir para um ensaio multicêntrico”, disse Ayares, presidente e diretor científico da Revivicor, uma subsidiária da United Therapeutics, a Gupta.
No entanto, isso ainda não será suficiente para solucionar totalmente a falta de órgãos, sendo que a United Therapeutics e outros da comunidade de transplantes continuam considerando alternativas para o futuro.
“Acredito que a próxima etapa será… criar órgãos personalizados onde não precisaremos usar nenhuma imunossupressão”, declarou Montgomery sobre suas perspectivas para o futuro. Isso poderia envolver o uso de um órgão de porco como suporte, onde cientistas poderiam semear células-tronco humanas, ou até mesmo a impressão de órgãos em 3D. “Assim, você teria um órgão personalizado para aquela pessoa quando ela precisasse”, afirmou Montgomery.
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Fonte: CNN Brasil