A trajetória de Pepe Mujica demonstra que uma alternativa é viável

Sua morte não deve ser vista como um término, mas sim como uma prova: de que a vida pode ser valorizada e de que o mundo, apesar do cinismo e do consumismo, ainda pode ser diferente.

14/05/2025 21h11

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(Imagem de reprodução da internet).

Perdemos Pepe Mujica, mas isso não significa ausência, pois homens como ele se tornam sementes. Sua partida é a lembrança de que outros mundos são possíveis, mesmo quando o presente insiste em nos dizer o contrário.

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José Mujica, nascido em Montevidéu em 1935, filho de uma família humilde com raízes rurais e imigrantes, cresceu entre o campo e a cidade, entre a humildade e o desejo de justiça. Sua entrada na política não foi fruto do cálculo, mas sim da indignação.

Inspirado pelas ideias do socialismo latino-americano (especialmente pela Revolução Cubana) e pelas desigualdades que observava, tornou-se membro do Movimento de Libertação Nacional. Diferentemente das representações superficiais, os Tupamaros não eram apenas guerrilheiros; eram, primordialmente, jovens intelectuais e trabalhadores que procuravam um caminho revolucionário para enfrentar a concentração de terras, riquezas e poder. Sua trajetória é, como afirmava, a evidência de que “conquistar na vida não é vencer, mas erguer-se e recomeçar sempre que se falha”.

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Foi baleado seis vezes e passou quase 14 anos na prisão, a maior parte em condições desumanas. Passou por celas de isolamento, calabouços e sofreu tortura psicológica. Em vez de desenvolver ódio, o fez com uma filosofia, e é isso que distingue Mujica.

Aqueles anos de isolamento foram, sem dúvida, os que mais me ensinaram […]. Tive que repensar tudo e aprender a me aprofundar em mim mesmo, às vezes, para não enlouquecer. Sua libertação, com o fim da ditadura, foi o início de uma nova fase, não mais como combatente armado, mas como semeador de um projeto ético e coletivo de sociedade.

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Como um dos fundadores do Movimento de Participação Popular (MPP), contribuiu para a formação da Frente Ampla como uma força política plural, democrática e conectada aos movimentos sociais. Através dela, alcançou a Câmara e o Senado, posteriormente o Ministério da Agricultura e, por fim, a Presidência. Seu governo (2010-2015) não foi isento de falhas, porém, representou uma profunda transformação.

Sob sua liderança, o Uruguai se tornou referência em políticas progressistas: legalizou o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, de forma inédita, regulamentou o mercado da maconha, combatendo abertamente o tráfico. E não o fez em nome de modismos, mas de princípios: “Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é dar pessoas ao tráfico”.

Internacionalmente, Mujica não almejou destaque, porém protagonizou os gestos mais simbólicos da ética política desta época. Em seu pronunciamento na Rio+20, em 2012, apresentou uma das críticas mais radicais ao modelo de civilização centrado no consumo: “O desenvolvimento não pode ser contra a felicidade. Deve ser a favor da felicidade humana: do amor pela vida, dos relacionamentos humanos, do cuidado com os filhos, de ter amigos, de ter o essencial. Isto porque essa é a maior riqueza que possuímos: a felicidade”.

Sua filosofia representava uma síntese de existencialismo e radicalismo ético. Mujica nos convidava a renunciar à idolatria do mercado e da acumulação, e a conceber a política como serviço, como solidariedade. Acreditava, de forma notável, que as instituições não são eficazes se não forem permeadas por valores. Por isso, sempre rejeitou os luxos do cargo, doando 90% de seu salário presidencial e mantendo sua residência em Rincón del Cerro, utilizando seu Fusca azul para receber seus companheiros e adotando cães abandonados.

Em um período em que a política se tornou um espetáculo, Mujica permaneceu um homem. Humano e falível, porém profundamente coerente. Suas declarações desconcertavam os tecnocratas porque ressaltavam o essencial, o que o capitalismo busca ocultar.

Acreditava em um socialismo ético e sustentava que o principal problema de nossa época não era somente a pobreza material, mas a colonização dos desejos. “Pobre não é quem tem pouco, mas aquele que necessita infinitamente de muito e deseja cada vez mais”, afirmava. Sua filosofia política combinava simplicidade camponesa com sofisticação moral.

Ao lado de figuras como Salvador Allende, Paulo Freire e Che Guevara, Mujica integra a constelação dos latino-americanos que não se deixaram corromper pela dor ou pelo poder. Sua utopia não era uma abstração romântica, mas uma postura diante da vida. Ele demonstrava que era possível fazer política sem mentir, sem enriquecer, sem se afastar do povo. Isso, por si só, já era revolucionário.

Seu discurso na Assembleia-General das Nações Unidas em 2013 permanece como um dos manifestos mais impactantes da história contemporânea: “Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão”.

O evento provocou a reflexão de líderes mundiais diante da simplicidade de um camponês que expressava verdades antigas. “Nossa civilização construiu um desafio falso e, da mesma forma como nós, não é possível satisfazer esse senso de desperdício que se instalou em nossas vidas. Isso se manifesta como uma cultura de nossa época, sempre guiada pela acumulação e pelo mercado.”

Com o passar dos anos, Mujica sintetizaria essa experiência com a perspicácia de alguém que vivenciou a falta e rejeitou os supérfluos: “Se você não consegue ser feliz com o pouco, não será feliz com muito”.

Ao nos despedirmos de Pepe Mujica, não enterrávamos um político, mas celebravamos um símbolo. Um raro exemplo de coerência entre vida e palavra. De humildade como forma de poder. De radicalidade como expressão do amor ao povo. Foi, como diria Eduardo Galeano, um daqueles seres que ardem a vida com tanta paixão que transformam tudo ao redor.

Não existem dois incêndios iguais. Há incêndios grandes e incêndios pequenos, chamas de todas as cores. Há pessoas de fogo sereno, que nem percebem o vento, e pessoas de fogo louco que enchem o ar de faíscas. Alguns incêndios, incêndios bobos, não iluminam nem aquecem. Mas outros ardem com tanta paixão que não se pode olhá-los sem piscar, e quem se aproxima se incendeia.

O escritor uruguaio afirmava que a utopia serve para que se continue a caminhar. Mujica foi esse andarilho da utopia, semeando caminhos por onde passava. Sua morte não deve ser lida como fim, mas como testemunho: de que a vida pode ser digna e de que o mundo, mesmo esmagado pelo cinismo e pelas mercadorias, pode ser outro.

Hoje, lamentamos a perda de Pepe Mujica. Simultaneamente, adquirimos o dever de preservar sua essência – nos movimentos sociais, nas universidades, nas assembleias, nas ocupações, nas palavras que ainda se atrevem a sonhar.

Sim, Pepe, outros mundos são possíveis. E a sua vida foi a maior prova disso. Para sempre!

Fonte: Carta Capital

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