Aos 100 anos, Rubem Fonseca necessita ser libertado da camisa de força do brutalismo
As obras de Rubem Fonseca são reconhecidas pelas narrativas violentas, contudo apresentam uma complexidade que vai além do brutalismo.

Em 11 de maio, celebram-se 100 anos de Rubem Fonseca, um dos renovadores da literatura brasileira a partir dos anos 1960. O centenário será comemorado com dois lançamentos: “Todos os Contos + 2 inéditos”, que reúne todas as histórias curtas do escritor em 2.096 páginas, e uma fotobiografia criada por Bia Corrêa do Lago, escritora, editora e filha de Fonseca.
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Os três volumes de contos serão vendidos exclusivamente na Amazon a partir de 9 de junho, com preço de R$ 399. A biografia fotográfica será lançada em novembro pela editora Capivara.
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A filha encontrou os contos inéditos da caixa nos armários do apartamento onde ele residia, no Leblon, zona sul do Rio. O escritor faleceu em 2020, aos 94 anos. Os dois textos foram escritos em 1948, quando tinha 22/23 anos. “Natal” narra a angústia de um homem solitário na noite de festas. O outro conto, “Arinda”, apresenta a vertigem de um escritor diante dos enredos que inventa, não sabendo distinguir realidade de fantasia.
Fonseca publicou sua primeira obra em 1963 com uma abordagem direta, utilizando a metáfora do boxe como preferência. O livro de contos, intitulado “Os Prisioneiros”, alcançou reconhecimento imediato pela crítica. “Ninguém no Brasil escrevia daquele jeito: vibrante, criativo, inquieto, desconcertante, incômodo, realista, surrealista, cético, cruel”, afirmaram seus primeiros admiradores, como o jornalista Sérgio Augusto, em um texto publicado na reedição de “Os Prisioneiros” pela editora Agir, em 2009.
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O crítico Wilson Martins, uma das figuras mais relevantes da época, afirmou que ali surgia um renovador do conto e lançou as metáforas de violência que assombrariam Fonseca ao longo de sua vida: “Um escritor que traz a literatura no sangue”. O texto foi publicado no suplemento literário de O Estado de S. Paulo e faz parte da edição de 2009.
Fonseca prevê em suas narrativas a eclosão da violência que se seguiu à ditadura brasileira. Seus personagens não possuem motivação, como ocorria na época com os marginalizados e bandidos que buscam retribuição por supostos atos de injustiça. Ele substitui a ideologia política por outro poder: o da violência em relação à violência.
Disse um dos personagens da história “Feliz Ano Novo”: “Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele trovão”. O impacto jogou o homem com força contra a parede. Ele escorregou lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele havia um buraco que caberia um panetone.
Para Fonseca, os personagens não possuem nenhuma dimensão de esperança política na rebeldia dos marginalizados da sociedade. Karl Erik Schollhammer, professor de literatura da PUC-Rio, afirma: “Do ponto de vista individual, os personagens são despidos impiedosamente de qualquer heroísmo engajado. Em um dos contos mais famosos do escritor, o bandido romântico adquire uma acidez inesperada de revolta individual, e a violência do ‘cobrador’ é apenas uma maneira de quitar as dívidas que a sociedade de consumo tem com os excluídos”.
O conto mencionado, “O Cobrador”, provoca uma torrente de dívidas na mente do leitor: “Estão me devendo comida, bebida, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo”.
Essa linguagem visual, considerada “quase pornográfica” por alguns críticos, possui uma dupla origem: deriva da experiência de Fonseca como comissário de polícia no Rio de Janeiro nas décadas de 1950 e da intensa leitura de romances policiais americanos, abrangendo obras de autores renomados como Raymond Chandler (1888-1959) e títulos de “pulp fiction”, com Mickey Spillane (1918-2006) à frente da tropa.
O resultado desse cruzamento é o que o crítico Alfredo Bosi denominou em 1975 de literatura “brutalista”. “Feliz Ano Novo” é o livro que explora as extremidades da provocação, com cenas de violência e sexo que remetem ao cinema de Quentin Tarantino. A obra foi censurada pela ditadura em 1975 sob a acusação de atentado contra a moral e os bons costumes. Só foi liberada 10 anos depois.
Muitos de esquerda reagiram à censura com ironia, considerando que Fonseca atuou no Ipes, instituto de pesquisa fundado em 1962 por um dos ideós da ditadura, general Golbery do Couto e Silva. Em artigo publicado em 1994, para comemorar o aniversário de 30 anos do golpe, Fonseca escreveu que se afastou do instituto com o golpe e que nunca foi “favorável à ruptura da ordem constitucional”.
O trabalho de Bosi, com seu caráter brutalista, tornou-se uma fonte de controvérsia e imitação. A força dessas narrativas violentas obscureceu uma obra complexa, que explora experimentos vanguardistas, como na novela “Lúcia McCartney”, faz paródias de romances históricos, amontoa citações para desconstruir a erudição e alcança um nível de nonsense e niilismo que o aproxima de Samuel Beckett. Fonseca não era um, como sugere a ênfase no brutalismo. Ele tinha 300 anos, como afirmava de si Mário de Andrade.
Silviano Santiago aproximou Fonseca de Beckett através de um texto publicado em 2005 na Folha. O autor dividiu a obra de Fonseca em três fases. Na primeira, que abrange de “Os Prisioneiros” (1963) a “Feliz Ano Novo” (1975), a ficção do autor utilizava uma retórica tradicional, com personagens e fatos narrados de forma independente. Fonseca se destacava como o principal autor de contos brasileiros contemporâneos.
A segunda fase abrange “A Grande Arte” (1983) e “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos” (1988), caracterizada pelo “requinte, a aspereza e a depreciação pelo manuseio do saber armazenado pelas enciclopédias, pelos tratados de ciências exatas e humanas”.
A terceira fase, a partir de “A Fraternidade dos Espadas” (1998), “vive de deliciosos, arrebicados, injuriosos, luxuriosos e libidinosos nonsenses”. Num curto-circuito da tradição literária, a prosa “perde os seus atributos de narradora de fatos e criadora de personagens. Transforma-se num exercício literário contraditoriamente persuasivo e aparentemente gratuito, erudito e disparatado”.
O crítico considera a finalização do conto “Liber Arbítrio” como marco dessa última fase, que antecede “A Congregação dos Cavaleiros”: “Sim, eu também me tornei um monstro e meu único desejo na vida é voltar a ser macaco”.
Fonseca merece ser lembrado aos 100, apesar da complexidade.
Fonte: Poder 360