As mulheres negras: intersecções e desigualdades em saúde
Reforçar e dar ênfase a ações e políticas abrangentes para mulheres negras representa uma compensação histórica e equidade social.

Em 25 de julho de 1992, realizou-se em San Domingos, República Dominicana, o I Encontro de Mulheres Afro Latino-americanas e Afro Caribenhas, que se configurou como um marco na luta das mulheres negras. A partir daí, mulheres negras da América Latina e do Caribe têm cada vez mais reconhecido essa data como momento crucial para as reivindicações, visibilidade e mobilização contra a opressão de gênero e raça.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Neste dia se manifesta mais do que uma data comemorativa, representando o enfrentamento de diversos desafios impostos à trajetória das mulheres negras, a maioria historicamente presentes e que têm sido reconhecidos e denunciados ao longo dos anos. Assim, pode-se afirmar que ele também marca a trajetória de resistência e mobilização contínua.
No Brasil, o dia 25 de julho celebra Tereza de Benguela, símbolo de luta e resistência. Tereza foi uma quilombola que viveu no século XIX. Após a morte do companheiro, liderou o Quilombo do Piolho e, por duas décadas, conduziu mais de 100 pessoas negras e indígenas.
LEIA TAMBÉM:
● Caravana pelo Catatumbo – 20 anos resistindo no território
● Em prol de uma Conferência Estadual de Mulheres democrática e participativa, em SP
● Brasil soberano, mundo multipolar
Celebramos o Dia de Tereza de Benguela, honrando a resistência e a força da luta das mulheres negras e reiterando que o racismo e o machismo matam diariamente, quando violam sexual, física e psicologicamente os corpos.
As mulheres negras constituem a maioria das vítimas de feminicídio. De acordo com o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 68,6% das mortes violentas intencionais de mulheres ocorrem com mulheres pretas no Brasil. Adicionalmente, dados do Dossiê de Assassinatos e Violência contra Pessoas Trans de 2025 da Antra indicam que 78% das vítimas são travestis e pessoas trans negras.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Silenciam quando matam mulheres, fomentam o apagamento social, diminuem políticas públicas de proteção, ameaçam e destroem o clima, colocam em risco suas vidas e as de seus filhos, promovem o encarceramento em massa da população negra. Continuam matando ao romperem direitos conquistados, desqualificam ações executadas por mulheres em qualquer área de atuação, impõem condições salariais baseadas em gênero e raça, atacam a autonomia, os direitos sociais, sexuais e reprodutivos, trabalhistas, de educação, de saúde e de segurança. Afastam as mulheres negras dos espaços políticos.
Apesar de representarem 51% da população, com 28% mulheres negras, elas são uma minoria nos espaços de decisão, sendo que correspondem a apenas 2% no Congresso Nacional, e são vítimas constantes de violência política. Ademais, os dados do Tribunal Superior Eleitoral indicam que, em 2024, 59% das eleitas em todos os cargos foram mulheres brancas.
O racismo estrutural e institucional intensifica as disparidades sociais e as injustiças. As mulheres negras são as mais vulneráveis ao desemprego, à pobreza, à insegurança alimentar e à violência estatal. Elas enfrentam maiores dificuldades no acesso à justiça e apresentam maior índice de encarceramento. De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), apesar da redução da população carcerária feminina, a proporção de mulheres negras aumentou entre 2017 e 2024.
As mulheres negras também se encontram nos empregos mais vulneráveis e são responsabilizadas pelos cuidados e trabalho não remunerado. Ademais, a fome assume tons e gênero no Brasil, fenômeno que economistas têm chamado de feminização da fome, sendo que 51% das casas chefiadas por mulheres negras estão em situação de insegurança alimentar e nutricional.
Dificuldade no acesso aos serviços de saúde. É inegável que esta situação também se reflete no acesso aos serviços de saúde. As mulheres negras repetidamente têm suas dores minimizadas pelos profissionais de saúde, recebem menos atenção e são negligenciadas em suas queixas ao buscarem tratamento médico, sendo vítimas potenciais de violência obstétrica. De acordo com os registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan/MS), nos casos de violência contra mulheres adultas (20 a 59 anos), 60,4% foram contra mulheres pretas e pardas, enquanto 37,5% foram contra mulheres brancas.
A situação também se reflete nas políticas públicas de combate ao HIV e à AIDS, que têm negligenciado de forma relevante o racismo e as questões relacionadas às desigualdades e violências de gênero e seus impactos no cenário da epidemia. Ao longo dos anos, observamos o agravamento das pautas fundamentalistas e conservadoras que impactam significativamente nos direitos humanos, em particular nos direitos das mulheres, e no enfrentamento aos contextos de violências imbricados pelo racismo, machismo e a misoginia, perpetuando violações.
As crises sanitárias e climáticas recentes evidenciaram a relevância de entendermos o impacto das desigualdades de gênero, de raça, etnia, econômicas e sociais no processo de adoecimento, risco e morte das mulheres. A Aids e a tuberculose já nos mostravam o quanto as epidemias não são democráticas e atingem, de maneira específica, grupos historicamente marginalizados e minorias, sobretudo as mulheres negras.
O Brasil submeteu o relatório para a obtenção da certificação da eliminação da transmissão vertical do HIV, um avanço significativo que merece destaque. No entanto, ao celebrarmos, é necessário analisar os dados e considerar os grupos que ficaram para trás nessa situação.
A resposta se manifesta quando se realiza uma análise rápida de alguns dados recentes que sintetizam o quadro atual. De acordo com o Boletim Epidemiológico de HIV e Aids 2024, há um predomínio de casos de infecção pelo HIV entre gestantes não brancas, sendo que 53,1% se autodeclaram pardas e 14,3% pretas. Ademais, apesar das infecções entre mulheres terem demonstrado uma redução nos últimos anos, desde 2009, os casos de Aids são mais prevalentes em mulheres negras e o percentual de óbitos entre mulheres negras foi de 63,3%. Os dados do boletim epidemiológico de Sífilis de 2024 corroboram esse cenário, sendo que entre as mulheres gestantes diagnosticadas com sífilis, 12,5% eram pretas e 53,1% pardas. Esses dados não são meras coincidências, são consequências de questões estruturais que dificultam o acesso das mulheres negras às políticas públicas.
As mulheres negras são aquelas que mais oferecem apoio e recebem menos. As mulheres negras são aquelas que mais trabalham e recebem menos. São as que mais cuidam e menos são cuidadas. São as que mais sofrem com a fome. São as que mais morrem, inclusive de Aids.
Este cenário demonstra as desigualdades raciais e as múltiplas omissões, indicando a urgência de buscar além do alcance de metas e certificações internacionais, que consistentemente ignoram os contextos de vulnerabilidades e exclusão social. Não é suficiente a abordagem e análise tecnicista e biomédica, que propõe a centralidade da medicalização e o controle do corpo das mulheres, necessitamos de ações inclusivas e emancipatórias, além de espaços de escuta e acolhimento.
A compreensão da interseccionalidade entre gênero, classe e raça e sua relação com uma maior vulnerabilidade ao HIV e Aids, Sífilis, HTLV, Hepatites Virais e tuberculose indicam a urgência de uma agenda intersetorial efetiva, articulada com os demais movimentos sociais e comprometida com a garantia dos direitos das mulheres, buscando construir feminismos cada vez mais robustos.
Quando as mulheres negras se movem, o mundo inteiro se move conosco. Essa importante afirmação da filósofa e ativista Angela Davis é cada vez mais real e objetiva para as mulheres negras no mundo. Um futuro mais igualitário para todas, todos e todas passa inevitavelmente pela denúncia e o enfrentamento das injustiças e a garantia do protagonismo e da autonomia das mulheres negras.
Nós mulheres negras acreditamos que, além de buscar conhecer profundamente cada detalhe de cada ação, de cada projeto, de cada programa, de cada política, de cada governo, é fundamental ter ao nosso alcance ferramentas para análise crítica, para o debate e proposição de alternativas que desenhem horizontes de justiça.
Reforçar e dar prioridade a ações e políticas integradas para mulheres negras é reparação histórica e justiça social!
Cientista Social, ativista de saúde, Secretária Nacional da Aids e do Coletivo Feminista Gabriela Leite.
Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.
Fonte por: Brasil de Fato