Atenção redobrada: a sobrecarga de quem carrega a maternidade em um país marcado por desigualdades

A figura materna negra, de baixa condição social e origem nas periferias, frequentemente se depara com a indiferença, a desconfiança e, em algumas situações, até com a criminalização.

12/05/2025 21h09

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(Imagem de reprodução da internet).

No Brasil, o Dia das Mães é celebrado com demonstrações de afeto, estímulo ao consumo e a idealização de uma maternidade amorosa, dedicada e abrangente. Contudo, por trás desse cenário romântico, reside uma estrutura social permeada por desigualdades interseccionais de gênero, raça e classe. A maternidade não se configura como uma experiência homogênea, assumindo formas diversas, influenciadas por violências estruturais, disparidades materiais e uma divisão histórica do trabalho que sobrecarrega corpos racializados e empobrece vidas devido a um cuidado invisível e desvalorizado.

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Segundo o IBGE, mais de 11,5 milhões de domicílios brasileiros são chefiados por mães solteiras – mais de um quarto das famílias do país. A falta de apoio governamental e a divisão desigual das responsabilidades parentais fazem com que essas mulheres assumam sozamente a reprodução social. Ao analisar os dados por cor e renda, a realidade se torna evidente: são mulheres negras, pobres e residentes em áreas periféricas que sustentam, por meio de jornadas exaustivas e condições precárias, aquilo que a economia, a política e a cultura dominante negligenciam – o cuidado como infraestrutura essencial da sociedade.

Este trabalho é frequentemente desvalorizado, pouco remunerado ou não pago, e distribuído de maneira desigual. De acordo com o Ipea, 69,9% das pessoas que atuam no cuidado remunerado – como serviços domésticos e assistência a crianças e idosos – são mulheres negras. Entre as trabalhadoras domésticas, essa porcentagem chega a 65%, a maioria sem carteira assinada, com salários baixos e sem direitos garantidos.

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Para entender as origens dessas desigualdades, o pensamento de Lélia Gonzalez, intelectual, antropóloga, filósofa e uma das vozes centrais do feminismo negro no Brasil, é fundamental. Gonzalez denunciou como o trabalho das mulheres negras foi historicamente naturalizado como extensão de uma “condição servil”, herança direta da escravidão e da lógica colonial. Seu conceito de amefricanidade oferece uma crítica poderosa ao feminismo hegemônico, demonstrando como racismo e sexismo operam de forma interligada na América Latina, moldando o lugar social das mulheres negras. Nesse contexto, ela desmascara o mito da “mãe preta”: uma figura romantizada por sua dedicação, mas desumanizada e excluída de direitos.

No lar, a desigualdade se manifesta fortemente. Mulheres brasileiras investem, em média, 21,3 horas semanais em tarefas domésticas e de cuidado, enquanto homens dedicam apenas 11,7 horas, menos da metade do tempo. Essa sobrecarga física e mental dificulta o acesso à educação, ao lazer, à mobilidade social e à participação política. Esse fenômeno é denominado “pobreza de tempo”, uma condição estrutural que nega, principalmente às mulheres negras e pobres, a oportunidade de viver além da sobrevivência.

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Lélia Gonzalez auxilia na superação de uma visão universalizante da maternidade. Para ela, entender a realidade das mulheres negras demanda confrontar o viés epistêmico, a marginalização institucional e a desumanização histórica de seus corpos. Nesse sentido, a maternidade não pode ser separada de uma estrutura que simultaneamente exige e nega o cuidado.

Mães solo enfrentam múltiplas formas de opressão e negligência institucional. Sem suporte, com responsabilidade total e em instabilidade econômica constante, vivem em modo de sobrevivência contínuo. Não se trata apenas de resistência, é uma luta contra o colapso. Essa luta é frequentemente romantizada sob o discurso da “força da mãe brasileira”, quando, na realidade, reflete a omissão do Estado e a violência estrutural.

Comemorar o Dia das Mães sem abordar essas contradições é ignorar as desigualdades de um sistema que idealiza a maternidade no discurso, mas não assegura condições dignas para sua prática. A figura materna idealizada permanece como símbolo de afeto e sacrifício, enquanto muitas realidades permanecem à margem desse ideal. A mãe real – negra, pobre, periférica – frequentemente enfrenta indiferença, desconfiança e, em determinados contextos, criminalização. O reconhecimento da maternidade raramente se traduz em políticas públicas concretas: o Brasil ainda carece de um sistema nacional de cuidados, possui cobertura insuficiente de creches, licenças parentais desiguais e um mercado de trabalho hostil à parentalidade feminina.

Sob uma perspectiva interseccional, como a crítica negra de Gonzalez, a maternidade expõe não apenas desigualdades, mas uma estrutura de poder que determina quem pode maternar com dignidade e quem será forçado a fazê-lo sob exploração. Questionar “quem cuida de quem cuida?” não é um apelo moral – é uma exigência política. É urgente romper com a lógica que individualiza o cuidado, racializa o sacrifício e despolitiza a maternidade.

Além de flores, essas mães necessitam de uma redistribuição de tempo, renda, poder e reconhecimento. Precisam de políticas públicas universais e focalizadas, que coloquem o cuidado no centro de um projeto democrático, racial e de gênero. O verdadeiro tributo à maternidade não reside nas vitrines de maio, mas na coragem de enfrentar a injustiça histórica que atravessa o cotidiano de milhões de mulheres que continuam a cuidar – apesar de tudo.

Fonte: Carta Capital

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