Dengue se espalha no Sul e revela o impacto das alterações climáticas

O Brasil enfrenta novos desafios no combate à doença, com surtos em áreas tradicionalmente protegidas pelo frio, exacerbados por desigualdades sociais e crise climática.

13/05/2025 11h15

9 min de leitura

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(Imagem de reprodução da internet).

O Rio Grande do Sul apresentou um cenário inverso em relação à dengue no Brasil. Anteriormente, o frio limitava a proliferação do Aedes aegypti, mas o clima atual permitiu a expansão do mosquito transmissor do vírus da doença. Até o dia 8 de maio, o número de casos confirmados atingiu 15.643 e houve oito óbitos.

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A epidemia em curso, ainda menor que a do ano anterior, avança rapidamente: a taxa de transmissão já ultrapassa 2,08 e 474 municípios gaúchos estão afetados, dois a mais que em 2024. Na prática, isso indica que o vírus se expande em um ritmo semelhante ao registrado nos primeiros meses da pandemia de Covid-19, em 2020. Para especialistas, a mensagem é clara: mudanças climáticas, desigualdade urbana e falhas estruturais estão redefinindo o mapa da dengue – e o Sul entrou definitivamente na rota.

Conforme o pesquisador em saúde pública Diego Ricardo Xavier, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), a dengue está totalmente relacionada à questão climática.

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A dengue está se expandindo para o Sul, onde antes não ocorriam epidemias tão comuns, devido à barreira climática. Além de se deslocar para regiões subtropicais, o vírus está subindo montanhas. Se o aquecimento global persistir, poderá haver epidemias de dengue na Europa e nos Estados Unidos. Em alguns países europeus, como Espanha e França, já há registros de casos autóctones – infecções adquiridas localmente, sem relação com viagens a áreas endêmicas.

Até a metade de abril, o InfoDengue, plataforma da Fiocruz que é um dos principais sistemas brasileiros de monitoramento de arboviroses, registrou 1.757.065 casos suspeitos de dengue no país. Desses, mais de metade (67,69%) são classificados como prováveis, uma variação de quase 30% em relação a 2024.

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A epidemiologista Cláudia Codeço, coordenadora do InfoDengue, explica que as variáveis climáticas estão sendo consideradas no relatório e já apontam evidências do impacto do aquecimento global na expansão da doença para áreas historicamente protegidas.

Essas regiões estão apresentando períodos mais longos de clima favorável, notadamente com invernos mais amenos e a chegada precoce da primavera. Mesmo pequenas mudanças podem resultar em grandes aumentos de dengue, pois possibilitam que os vírus mantenham seu ciclo de transmissão durante o inverno e se reproduzam rapidamente com a chegada da primavera.

A situação presente, com surtos em áreas previamente consideradas pouco vulneráveis, é o reflexo mais evidente dessa nova dinâmica climática. Compreender como a dengue se disseminou globalmente auxilia na avaliação do desafio atual.

Mosquito que transmite quatro vírus

A dengue, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, é uma doença causada por vírus da família Flaviviridae, igual aos do vírus da febre amarela e do Zika. Existem quatro sorotipos – DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4 –, e a infecção por um deles produz imunidade apenas contra aquele tipo, tornando o organismo suscetível aos demais.

A transmissão do ciclo ocorre quando a fêmea do mosquito, ao picar um indivíduo infectado, adquire o vírus e passa a transmiti-lo a outros indivíduos ao longo de sua vida. Os sintomas mais frequentes incluem febre súbita, cefaleia, dor atrás dos olhos, mialgia e artralgia, eritema cutâneo e prostração.

A dengue, também conhecida como “febre quebra-ossos”, pode parecer inicialmente uma infecção viral comum, mas exige atenção redobrada, alerta a médica infectologista Emy Akiyama Gouveia, do Hospital Israelita Albert Einstein.

Normalmente, a doença é autolimitada, com recuperação espontânea. Contudo, pode evoluir para formas graves. Os sinais de alerta incluem sangramentos, dor abdominal intensa, vômitos persistentes, falta de ar, tontura e confusão mental. “Esses sinais costumam aparecer na fase em que a febre começa a ceder, entre o terceiro e o sétimo dia da doença”, explica Gouveia.

O diagnóstico é realizado primariamente através da avaliação clínica, sem a necessidade de confirmação laboratorial em certos casos. Testes rápidos e exames de sangue podem ser solicitados para confirmar a infecção ou acompanhar alterações em suspeitas de piora.

A médica ressalta que a automedicação é um risco e que a hidratação adequada é fundamental para evitar complicações. “O atraso na reposição de líquidos é um dos principais fatores de evolução desfavorável”, alerta.

Apesar do conhecimento existente, o controle da dengue permanece um desafio no Brasil. “O *Aedes aegypti* é onipresente no país”, afirma Gouveia. Ela ressalta que, embora a vacinação esteja em desenvolvimento, a cobertura ainda é baixa e, pelo SUS, restrita a grupos específicos da população.

Doença milenar

As primeiras descrições de uma infecção com características semelhantes à dengue remontam à China antiga, entre 265 e 420 d.C., durante a Dinastia Chin. Na época, a doença era conhecida como “veneno da água”, em uma associação popular com insetos voadores próximos a ambientes aquáticos.

Séculos depois, surtos parecidos foram registrados nas Índias Ocidentais Francesas e no Panamá no século XVII, e epidemias foram descritas na Ásia, África e América do Norte entre 1779 e 1780. A transmissão por mosquitos só foi confirmada em 1906; e o vírus, identificado no ano seguinte.

No Brasil, o Aedes aegypti chegou durante o período colonial, trazido da África em navios negreiros. Os primeiros registros de casos no país ocorreram no final do século XIX, em Curitiba, e no início do século XX, em Niterói (RJ), conforme o Instituto Oswaldo Cruz. Contudo, a dengue passou a ser considerada uma emergência em saúde pública a partir da década de 1940.

Na década seguinte, o Aedes aegypti foi eliminado do país, em razão dos esforços contra a febre amarela. Contudo, a flexibilização das ações resultou em seu reaparecimento.

Aquecimento global e o aumento de casos

Nas últimas décadas, as mudanças climáticas têm intensificado a situação. Uma pesquisa da Universidade Stanford, divulgada no final de 2024, aponta que o aquecimento global é responsável por cerca de 19% das infecções por dengue em escala global. O aumento da temperatura média, em particular entre 20°C e 29°C, favorece a proliferação do vírus e pode resultar em um crescimento de até 200% nos casos em áreas de ocorrência endêmica nas próximas décadas. Atualmente, aproximadamente 257 milhões de pessoas residem em regiões com potencial para que a incidência da dengue dobre em 25 anos.

No Brasil, as projeções seguem essa linha. Segundo o AdaptaBrasil, plataforma do governo federal que avalia a vulnerabilidade dos municípios às mudanças climáticas e propõe ações de adaptação, metade dos municípios deve apresentar risco alto ou muito alto para doenças transmitidas pelo Aedes aegypti até 2030. As estimativas consideram variáveis como temperatura, chuvas, desmatamento, densidade populacional e acesso a saneamento básico.

Além da expansão geográfica, o padrão das epidemias se transformou. Anteriormente concentrada nos meses de verão, a transmissão da dengue agora se estende por quase todo o ano em diversas regiões, impulsionada por ondas de calor fora de época. Segundo levantamento do Observatório de Clima e Saúde da Fiocruz, o intervalo entre epidemias praticamente sumiu: os anos de 2022, 2023 e 2024 registraram surtos consecutivos.

Eventos como o El Niño, que aquece as águas do oceano Pacífico na linha do Equador, também influenciaram. “Quando ocorreu o El Niño, o verão começou antes. Em setembro já estava um calor intenso. Esse calor fora de época, aliado a chuvas e mais criadouros disponíveis, elevou o tempo de reprodução do mosquito”, resumiu Xavier, da Fiocruz.

Enfrentamento estrutural

Apesar do cenário crítico, novas estratégias de combate à dengue apresentam perspectivas promissoras. Além dos avanços no manejo clínico — com atualização dos protocolos de hidratação e diagnóstico precoce pelo Ministério da Saúde, que agora trata inicialmente todas as arboviroses como dengue — o foco se volta para o enfrentamento do vetor e a ampliação da vacinação.

A estratégia para o controle do mosquito inclui o projeto Wolbachia. A bactéria, que naturalmente ocorre em aproximadamente 60% dos insetos, foi introduzida no Aedes aegypti para impedir sua capacidade de transmitir o vírus. Programas na Indonésia, Austrália e Colômbia demonstraram reduções superiores a 75% nos casos de dengue nas áreas-alvo.

No Brasil, o programa é desenvolvido pela organização sem fins lucrativos World Mosquito Program (WMP) em parceria com a Fiocruz e o Ministério da Saúde. Atualmente, está presente em cinco cidades, com previsão de expansão para mais seis. Em Niterói, análises indicam uma queda de aproximadamente 70% nos casos de dengue, 60% nos de chikungunya e 40% nos de Zika nas áreas onde os mosquitos foram liberados.

No campo da imunização, as perspectivas são animadoras. A vacina Qdenga apresentou eficácia superior a 80% contra os quatro sorotipos e expandiu as opções de prevenção para pessoas entre 4 e 60 anos. Há grande expectativa pelo imunizante do Instituto Butantan, desenvolvido há mais de uma década e que ainda aguarda aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Com dose única e eficácia de 79,6%, a vacina nacional poderá ser incorporada ao Programa Nacional de Imunizações (PNI).

No entanto, essas soluções terão efeito real se houver planejamento e ação coordenada. “A resposta oportuna à dengue exige preparação, com planos de enfrentamento organizados, uma rede de resposta capacitada e um sistema de alerta”, afirma a coordenadora do InfoDengue.

Ademais, é imprescindível combater as causas estruturais do problema – principalmente no contexto das mudanças climáticas e das desigualdades sociais no Brasil. Diego Xavier menciona o caso da epidemia de dengue que afetou São Paulo durante a crise hídrica de 2014. “Muitas pessoas iniciaram o acúmulo de água. Isso gerou um criadouro artificial e desconstruiu modelos clássicos que sustentavam que, para ocorrer a dengue, era necessário calor e chuva”, explica.

As áreas mais atingidas foram, em grande parte, aquelas com pior acesso à água. “Não vamos mais conseguir reverter a situação, ela já foi para o vinagre. O que podemos fazer agora é tentar diminuir o tamanho do impacto”, afirma o pesquisador. Para ele, o mais viável é investir em infraestrutura urbana — como saneamento e moradia — e em campanhas educativas, seguindo o exemplo de países asiáticos como Singapura e Vietnã, que conseguiram controlar a doença.

Ademais, é necessário fortalecer os serviços de saúde nas localidades que historicamente não apresentavam a doença e orientar a população no combate ao vetor. “Educação e resolver os problemas de base são avanços importantes para evitar epidemias, mas não são uma solução imediata. Precisamos usar todos os recursos disponíveis”, conclui Xavier.

Por que ocorre o aumento anual dos casos de dengue? Compreenda os fatores.

Fonte: CNN Brasil

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