Fisco busca informações em trusts e abre disputa legal
Advogados tributaristas apontam que a Receita Federal busca tributar recursos de pessoas que não possuem controle sobre bens.

A Receita Federal exigirá a declaração anual do Imposto de Renda com a atualização de recursos de brasileiros em trusts no exterior a partir de 2025. A medida se aplica principalmente aos trusts revogáveis, onde o titular administra os próprios recursos e é o beneficiário formal do incremento anual do patrimônio.
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A Receita Federal também exigirá a declaração para aqueles que depositou valores em trust irrevogável, administrado no exterior por terceiros e sem identificação clara dos beneficiários.
O anúncio da Receita Federal é visto como controverso por especialistas em direito tributário, que consideram que a estratégia do Fisco busca algo praticamente inviável: arrecadar recursos sem conhecer os beneficiários reais dos trusts. Além disso, a autoridade arrecadadora busca cobrar recursos por um direito que só será obtido no futuro.
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O trust é um tipo de investimento no qual alguém deposita bens ou valores para proteger o patrimônio familiar ou de grupos em moeda estrangeira. Trata-se de uma palavra em inglês, cujos significados são “confiança”; depósito, algo que foi deixado em confiança; lealdade; monopólio. Há em português a palavra “trustee”, mas no meio tributário e fiscal acabou se popularizando no Brasil a versão com a grafia em inglês, “trust”.
Após a lei nº 369 e os fundos exclusivos, a Receita Federal intensificou o monitoramento de investimentos no exterior, incluindo trusts. Especialistas apontam que a obrigatoriedade de declarar um trust irrevogável gera quatro problemas primários:
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Advogados consideram equivocada a estratégia da Receita Federal de atribuir aos beneficiários a responsabilidade por declarar ativos que eles podem não conhecer. O administrador tem discricionariedade para efetuar ou não o pagamento aos beneficiários, pois detém o poder final de decisão sobre os recursos.
Ademais, a cobrança da Receita Federal terá difícil aplicação. Seria necessário realizar investigações em ativos no exterior. Até que a distribuição dos recursos seja realizada, o governo brasileiro terá dificuldades em encontrar os destinatários dos valores, uma vez que a transferência pode estar definida para pessoas jurídicas de outros países.
Estratégia do Fisco
A Receita Federal solicita que indivíduos declarem e paguem os rendimentos. O comunicado da Receita Federal responde a uma consulta de um brasileiro que poderia ter acesso a recursos localizados no exterior em situações excepcionais. No caso, a pessoa afirma que a família possui uma realidade financeira que “provavelmente nunca” necessitaria recuperar os recursos, mas o trust serviria para uma “extrema necessidade”, como questões de saúde. A íntegra do caso (PDF – 261 kB).
Para a Receita Federal, mesmo que a pessoa não seja considerada beneficiária do trust, a transferência em caso de emergência é suficiente para determinar a necessidade de declaração anual do imposto federal. Nesse cenário, os rendimentos decorrentes do ganho financeiro das aplicações no exterior seriam sujeitos à tributação no Brasil.
O caso é específico, porém pode ter implicações em larga escala para os trusts irrevogáveis. A Receita Federal (PDF – 126 kB) informou, na terça-feira (6.mai.2025), que não será necessária a “efetiva aquisição” do direito ao patrimônio do trust para que uma pessoa seja considerada beneficiária de um trust. “A existência de uma expectativa de direito ao patrimônio do trust é suficiente para a caracterização da condição de beneficiário”, disse a Receita Federal.
Especialistas comparam a situação com a de um testamento em que um pai doará bens aos filhos e a lei exige informações anuais dos filhos sobre os bens ainda não herdados.
A estrutura de um trust envolve a criação de um fundo, com um trustee responsável pela administração, e beneficiários que recebem os frutos do investimento.
A legislação brasileira reconheceu o trust como uma figura contratual submetida à lei estrangeira, que estabelece uma relação jurídica entre os seguintes elementos:
Dificuldade de aplicabilidade.
O anúncio da Receita Federal levanta questões sobre a viabilidade da norma. Existem distinções entre o trust irrevogável e o trust revogável. Entenda os detalhes desses dois tipos de trusts.
Em primeiro lugar, o brasileiro deverá informar anualmente os ganhos financeiros provenientes do trust ao governo federal. Os rendimentos serão tributados após a declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física. A Receita Federal nesse caso pode utilizar os dados do titular do trust e obrigá-lo a pagar o imposto.
No segundo caso, do trust irrevogável, o titular dos ativos – o “settlor” (instituidor) – elabora um documento com as disposições de vontades e designa uma pessoa para administrar os ativos, que é o trustee (administrador). Quando o “settlor” (instituidor) transfere os bens para o trust, ele perde o controle dos recursos.
O advogado especialista em direito tributário Julio Barbosa, do escritório Barbosa Legal, afirma que nos Estados Unidos, quando o valor é acima de US$ 40 milhões, o imposto de transmissão sucessória tem alíquota de 40%. Assim, milionários optaram por criar trusts para se proteger da tributação elevada.
Para que a Receita Federal dos Estados Unidos aceite o modelo como proteção contra a alíquota de 40%, o trust deve apresentar característica irrevogável.
Os brasileiros também escolheram essa modalidade de trust para preservar o patrimônio familiar no exterior. A Receita Federal tenta, contudo, identificar o beneficiário, mesmo quando o titular não detém mais os recursos.
Se o indivíduo não detém o controle, não pode ser obrigado a realizar algo sobre o qual não tem controle. Isso é princípio fundamental, afirma Julio Barbosa. O especialista declarou que os trusts são figuras regidas por leis internacionais, e não há obrigação para identificar os beneficiários do empreendimento no exterior.
O advogado considera que o anúncio da Receita Federal é inconstitucional, pois a pessoa deixa de ser proprietária dos bens e direitos. Avalia que essa interpretação deve ser analisada na Justiça, por impor aos brasileiros o pagamento de recursos sobre bens dos quais não detêm mais posse.
No caso do exemplo que foi objeto de consulta à Receita Federal, em que o brasileiro poderia precisar dos recursos em caso de emergência, Barbosa avalia que, se há transferência de dinheiro, há o pagamento do Imposto de Renda sobre o valor recebido, o que já é estabelecido pela legislação antes da lei aprovada em 2023.
A Receita Federal implementou uma estratégia para obrigar os beneficiários de trust a pagarem impostos, mas o especialista considera que essa medida “não se sustenta” e que se trata de uma tática para assustar as pessoas. Ele acredita que a norma deverá elevar o volume de processos na Justiça Federal.
O fisco gerou questionamentos.
O advogado Eduardo Diamantino, do escritório Diamantino Advogados Associados, afirma que o novo informe da Receita Federal pode não ter efeito. Considera a resposta do órgão como “estranha” por utilizar como base um benefício futuro do brasileiro que pode não ser contemplado.
“Não é porque está publicado que é válido”, afirma o advogado em relação à solução da consulta feita ao Fisco. Para ele, a Receita Federal buscou “cercar de qualquer jeito” os trusts e exigiu uma obrigação tributária a um terceiro. A lei estabeleceu que o instituidor ou o beneficiário deverá solicitar ao trustee (administrador) a disponibilização dos recursos financeiros e das informações necessárias para viabilizar o pagamento do imposto e o cumprimento das demais obrigações tributárias no Brasil.
“Como pode se exigir uma obrigação tributária de um terceiro antes que ele seja beneficiário?”, questionou Diamantino. E completou: “Eu acho que a conclusão é totalmente errada, principalmente considerando a tipicidade desse tipo de trust que está olhando”.
O advogado exemplifica com um caso de jovem que estabelece um trust irrevogável para os filhos, com acesso a partir dos 70 anos do pai. “Se, antes da minha morte, todos os meus herdeiros falecerem, eles nunca serão beneficiários. Essa disposição de obrigação por expectativa de direito é muito estranha”, declara. “É como se eu fizesse um testamento doando bens aos meus filhos e, a partir daí, a lei passasse a imputar a eles a obrigação de informar sobre os bens que eles efetivamente não herdaram”, afirma o advogado.
Gabriel Santana Vieira, advogado especialista em direito tributário e sócio proprietário do Grupo GSV, considera que a posição da Receita Federal levanta questionamentos, pois o Código Tributário Nacional estabelece como fato gerador do Imposto de Renda a “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” de renda ou proventos de qualquer natureza.
Se não há efetiva aquisição ou possibilidade concreta de uso de valores, a exigência de tributação pode ser juridicamente questionada, declarou o advogado.
Para o especialista, a ausência de obrigatoriedade no informe do beneficiário do trust também gera questões à Receita Federal. “Atualmente, não há um mecanismo direto e automático para que a Receita Federal identifique os beneficiários de trusts estabelecidos no exterior”, declarou.
A fiscalização depende das seguintes condições:
A dificuldade da fiscalização automatizada impulsiona a postura mais rigorosa da Receita Federal, que busca responsabilizar o contribuinte desde a constituição do trust, evitando o uso dessa figura para adiar ou esconder rendimentos tributáveis, afirma Vieira.
Verificar receita
A publicação da Receita Federal no DOU ocorreu em resposta a uma consulta de um brasileiro. A “solução de consulta” abordou a situação de um trust irrevogável constituído no exterior por um pai que atua como representante de seu filho menor de idade.
Um trust foi criado em janeiro de 2008, de acordo com as leis do Estado de Delaware (Estados Unidos da América). O financiamento do projeto ocorreu por meio de contribuição realizada por uma pessoa jurídica localizada no exterior, que possuía ligação indireta com uma empresa brasileira.
O trust visa preservar um patrimônio destinado à proteção dos descendentes de um acionista de empresa brasileira. Os recursos serão empregados apenas em situações de “extrema necessidade” e não para enriquecimento ou lazer.
O acionista foi explicitamente removido da lista de possíveis beneficiários, contudo, o valor investido no trust garante uma reserva para circunstâncias extraordinárias. As condições estão detalhadas na carta de desejos do acionista, destinada aos membros do comitê protetor do trust.
A Receita Federal considera que a expectativa de receber a distribuição de um trust é suficiente para configurar a condição de beneficiário. A autoridade arrecadadora declarou que todas as pessoas indicadas, que possuem a expectativa de eventualmente receber a distribuição, podem ser consideradas beneficiárias.
Mesmo que a capitalização do trust tenha ocorrido por meio de patrimônio de pessoas jurídicas residentes no exterior, será necessário “investigar a cadeia patrimonial” para identificar a pessoa física que, em última instância, seja titular daquele patrimônio.
A Receita Federal declarou que a pessoa física será considerada o instituidor do trust. “Pelas informações apresentadas na consulta, no caso concreto, infere-se que essa pessoa seja aquela referida somente como o acionista”, complementou o Fisco.
Arrecadação em 2024
A legislação alterada sobre a tributação de holdings e fundos exclusivos arrecadou quase R$ 20,7 bilhões para o governo Luiz Inácio Lula da Silva em 2024. Os valores finais foram de R$ 7,67 bilhões provenientes dos holdings e R$ 13 bilhões dos fundos exclusivos.
A declaração do IRPF em 2025 será a primeira realizada conforme as normas estabelecidas em 2023. Em 2024, cidadãos brasileiros com ativos em trust no exterior puderam ajustar os valores de acordo com as novas diretrizes.
Na legislação brasileira, a transferência de dinheiro ou bens ao beneficiário do trust caracteriza-se como “doação” quando realizada durante a vida do titular, ou como “causa mortis” em decorrência do falecimento deste.
Os ganhos e rendimentos serão obtidos nas datas de constituição do trust e de transferência dos recursos, sujeitos ao Imposto de Renda da Pessoa Física.
A legislação exige que os bens e direitos integrantes do trust, sem considerar a data de aquisição, sejam informados diretamente pelo titular na DAA.
Fonte: Poder 360