O banquete de Veronese
A pintura, incorporou uma narrativa sobre a defesa da liberdade artística contra a tirania do gosto prevalecente.

A habilidade de adaptação é um sexto sentido. Muitos animais não a possuem: morrem. De outros não sabemos se adaptaram, permaneceram onde estavam, sem deixar descendência de espécie alguma.
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Nossas circunstâncias estão em constante mudança e, por não poderemos alterá-las, modificamos a nossa forma de lidar com elas.
Observe-se a pintura de Veronese, também conhecida como “Convívio em Casa de Lévi”. A forma de narrar essa história depende da perspectiva que se deseja adotar. Relatarei a história que mais me agrada.
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Veronese pintou a Última Ceia, porém a Igreja não apreciou. Assim, foi convocada a Inquisição para julgar o pintor. A questão central era: “Por que a Última Ceia está cheia de bêbados, anões e alemães”?
Veronese respondeu que havia amplo espaço para isso e que havia se preocupado em manter os bêbados, anões e alemães muito distantes de Jesus.
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Não obteve o resultado esperado. A Inquisição agiu como qualquer Inquisição reagiria. Ordenou que extinguisse aquelas figuras carnavalescas.
Veronese não desejava modificar uma obra tão notável. Optou por mudar de abordagem: os franceses, ingleses e alemães estavam ali porque, como artista, tinha o direito de se manifestar com a mesma liberdade que se permitia aos excêntricos e poetas. A Inquisição deve ter se divertido, não era tola.
Veronese e a Inquisição chegaram a concordar. Ajustaram-se.
A obra permaneceu a mesma. Apenas o título foi alterado. Deixou de ser “A Última Ceia” e passou a ser “O banquete em casa de Levi” ou “A farra em casa de Levi”.
A mudança ocorreu num instante e não causou prejuízos. Foi uma adaptação notável.
Não se costuma destacar a flexibilidade dos grandes artistas — e muito menos da Inquisição. E assim se construiu uma narrativa que é a da defesa da liberdade artística contra a tirania do gosto dominante.
A pintura sorriu.
Transcrito do Público
Fonte: Metrópoles