O Brasil em Cannes
Nove anos após a manifestação de apoio ao governo Dilma Rousseff, Kleber Mendonça Filho apresenta um grupo de frevo em premiação.

O contraste se destacava. Em maio de 2016, o Palácio dos Festivais em Cannes foi palco do protesto silencioso de Kleber Mendonça Filho e sua equipe de Aquarius. No tapete vermelho, eles carregavam cartazes que denunciavam o “golpe de Estado” que culminou no afastamento e impeachment da presidente Dilma Rousseff.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Na data de 18 de maio, a chegada da equipe de O Agente Secreto, mais recente filme de Kleber, foi acompanhada por uma apresentação vibrante do grupo de frevo pernambucano Guerreiros do Passo, com a participação da Ministra da Cultura, Margareth Menezes.
“Isto não significa que o mundo esteja perfeito”, afirmou o cineasta, após a sessão em que o filme foi bastante aplaudido. “Nós temos muito trabalho a fazer, inclusive no Brasil. Mas hoje, no nosso país, temos uma situação estabelecida de democracia.”
LEIA TAMBÉM:
● Paulo Henriques Britto, escritor e poeta, foi selecionado para a ABL
● Janja, Fernanda Torres, Marcelo Rubens Paiva: a lista dos homenageados com a condecoração Grã-Cruz da Cultura
● De “corrupto” a “babaca”: a troca de ataques entre Bruce Springsteen e Trump
O Agente Secreto ocorre no período da ditadura, no Carnaval de 1977, em Pernambuco. Wagner Moura interpreta Armando, que se disfarça sob o codinome Marcelo, um professor e pesquisador universitário que retorna a Recife em busca de documentos oficiais de sua mãe, e percebe que está sendo alvo de um plano de assassinato por um empresário do setor energético com conexões significativas com o governo.
Armando abastecia seu Fusquinha amarelo em um posto de estrada, com um cadáver coberto por jornais. A polícia rodoviária que chegou demonstra interesse em encontrar um motivo para confiscar bens do motorista. No entanto, os policiais se limitam a pegar alguns cigarros e deixam o corpo em decomposição.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
O filme desempenha um papel importante na preservação da memória de um período sombrio da história brasileira, que ainda é desconhecido ou negado por parte da população. Kleber ressalta aspectos marcantes da brasilidade – a corrupção, o abuso de poder, a banalização da violência e os privilégios de classe – que persistem nas relações entre o Poder Público e o cidadão.
O diretor considera “O Agente Secreto” como um irmão desconhecido de “Ainda Estou Aqui”.
Ao longo da história, o diretor constrói conexões entre o Brasil durante a ditadura e o presente. Observa-se policiais removendo corpos d’elos em um rio, enquanto uma mulher rica desfruta de vantagens ao dar seu depoimento na delegacia sobre a morte do filho da empregada, que estava sob seus cuidados quando foi atropelado. A referência é evidente: o trágico falecimento do menino Miguel após a queda do nono andar em um edifício de luxo no Recife, em 2020. A ré, dona da mãe da criança e casada com um político influente, comparece ao processo em liberdade.
Recife possui uma importância fundamental na obra de Kleber Mendonça Filho desde seus primeiros curtas-metragens, na década de 1990, e neste novo trabalho é povoada por tubarões, metafóricos ou reais, que, em todo o momento, pontuam a narrativa. “A cidade lida com um problema real de ameaça de tubarões, não é uma questão de pesadelo por ter visto o filme Tubarão”, afirma o diretor. “Acho curioso juntar com a lenda urbana, que é uma lenda, mas vem de medos reais. Essa união entre a luz e a sombra acho fascinante.”
A presença de Kleber, que outrora foi crítico de cinema, é notável em O Agente Secreto, através das referências cinematográficas exibidas. A tradição oral, que remete à lenda urbana da Perna Cabeluda, divulgada pelos jornais sensacionalistas da época, permite uma conexão com o cinema fantástico, elemento constante em sua produção.
Adicionalmente, ressalta-se a relevância atribuída à memória dos cinemas de rua, tema abordado em seu documentário Retratos Fantasmas (2023). O tradicional Cinematógrafo São Luiz, no centro do Recife, possui mais do que o status de local onde são exibidos os filmes Tubarão e A Profecia; ele é praticamente um personagem.
O diretor afirma: “O cinema é um elemento de época muito forte, e, desde criança, eu o associo a um marcador de tempo de fatos da minha vida”. Ele complementa: “O cinema é quase como uma direção de arte afetiva, até porque a sala de exibição fotografa muito bem”.
O filme representa o retorno do diretor, que concorre na principal competição de Cannes – nove anos após vencer o Prêmio do Júri com Bacurau (2019) – e, embora também explore o cinema de gênero, em cenas dignas dos melhores thrillers de alta tensão, apresenta uma atmosfera menos catártica e explosiva.
A expectativa se justifica não apenas pelo prestígio de Kleber Lucas em Cannes, mas pelo vínculo temático com Ainda Estou Aqui, de Walter Salles – ambos retratam a ditadura e apresentam personagens perseguidos, direta ou indiretamente, pelo regime, o que gera uma expectativa natural de que O Agente Secreto repita o sucesso e a repercussão do recente vencedor do Oscar de Filme Internacional.
“Eu falei para o Walter quando vi o filme dele em Veneza: “Estou trabalhando em um filme que é um irmão desconhecido do seu. Nunca se falaram e são bem diferentes, mas são irmãos, e eu acho isso bonito”, conta Kleber. “A trilha aberta por Ainda Estou Aqui trouxe uma energia renovada muito forte para o cinema brasileiro, e é a primeira vez que isso acontece no pós-pandemia.”
Com base na repercussão entre o público e a crítica internacional após a primeira sessão em Cannes, essa relação pode ainda se expandir.
Publicado na edição nº 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.
Este texto encontra-se na edição impressa de CartaCapital com o título “O Brasil em Cannes”.
Fonte: Carta Capital