O cinicismo ocidental é questionado no que diz respeito aos direitos humanos na China, América Latina e Caribe
Notas da Segunda Mesa Redonda China-América Latina sobre Direitos Humanos

A Segunda Mesa Redonda China–América Latina e Caribe expõe o enfraquecimento e a contradição da narrativa hegemônica do Ocidente em relação aos direitos humanos. Em um contexto de conflitos, genocídios divulgados e imposições isoladas, o Sul Global busca estabelecer sua própria agenda. O encontro representa um chamado para questionar e um empreendimento de construção de alternativas para o desenvolvimento e a articulação além dos padrões predominantes.
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A Nova Ordem Mundial debate os destinos da governança global.
Participei da Segunda Mesa Redonda China–Estados Latino-Americanos e Caribenhos sobre Direitos Humanos, realizada em 25 de julho em Sã Paulo, organizada pela Sociedade Chinesa de Estudos de Direitos Humanos (CSHRS), Universidade Renmin da China (RUC) e Universidade do Estado de Sã Paulo (UNESP). O encontro reuniu representantes de 20 países em um esforço conjunto para repensar os rumos da governança global em direitos humanos com uma perspectiva que não seja imposta pelo Ocidente. Trata-se do primeiro evento do Sul Global com essa proposta: construir, em colaboração, uma agenda própria, baseada nas realidades nacionais e no respeito à soberania – ou seja, o que a China tem denominado de comunidade de destino compartilhado. Esse conceito expressa a ideia de que todos os países, apesar de suas diferenças, estão interligados e devem cooperar para lidar com desafios globais como a pobreza, as mudanças climáticas, os conflitos e as desigualdades. Isso, naturalmente, não se realiza por meio do uso da força ou da imposição de modelos institucionais.
Este ano, um dos temas centrais foi o papel das ferramentas digitais na promoção dos direitos humanos, assunto diretamente relacionado à minha pesquisa de doutorado. Foram identificados três grandes desafios para o presente e o futuro digital: 1) assegurar os direitos humanos no ambiente virtual; 2) estabelecer princípios éticos e regulatórios capazes de limitar aplicações nocivas das tecnologias, notadamente aquelas que intensificam desigualdades ou ameaçam direitos fundamentais e 3) combater a discriminação algorítmica. Destaca-se que, no Ocidente, as grandes empresas americanas (Big Techs) têm definido os rumos e usos dos espaços digitais, moldando algoritmos, coletando dados e utilizando seus interesses mercantis.
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A China tem promovido um modelo de governança digital global mais equitativo, fundamentado na autonomia tecnológica e na colaboração internacional. Os acordos celebrados por Lula em Pequim, em maio, refletem essa orientação. No âmbito tecnológico, Brasil e China formalizaram memorandos sobre propriedade intelectual, inteligência artificial, economia digital e questões geográficas, além de parcerias com a ApexBrasil, o IBGE e o Ministério das Comunicações. Ressalta-se a criação de um Centro Conjunto de Transferência de Tecnologia e o anúncio de intenções para o compartilhamento de dados espaciais com nações da América Latina e do Caribe.
Ações que fortalecem um modelo de cooperação baseado em troca, autonomia e respeito mútuo, sem imposições nem condicionamentos políticos.
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A defesa da soberania foi outro ponto constante, sendo argumentado que ela é essencial para assegurar os direitos humanos. Os países presentes enfatizaram que não se pode garantir qualquer direito quando o território está ocupado, quando há sanções unilaterais ou quando se impõe um modelo externo por meio de ameaça, chantagem ou guerra. A experiência colonial de muitos países latino-americanos e caribenhos, juntamente com a memória das invasões estrangeiras sofridas pela China, constituem um contexto comum para essa crítica. O reconhecimento da desigualdade global como legado de um sistema colonial não foi considerado mera retórica, mas sim uma base para qualquer novo paradigma em direitos humanos.
A pauta também discutiu a necessidade de repensar a governança internacional dos direitos humanos. Atualmente, muitos dos organismos multilaterais perderam seu significado, ao serem dominados por interesses políticos e assimétricos. O documento final deste Fórum, denominado “Consenso de São Paulo”, defende um multilateralismo genuíno, com votos iguais entre os países, o fortalecimento da ONU e a construção de mecanismos mais justos, transparentes e inclusivos. Em vez da politização dos direitos humanos, trata-se de integrar direitos civis e políticos com os direitos econômicos, sociais e culturais. Ou seja, direitos são construções históricas e políticas, e não existem no vazio, nem as liberdades (como de expressão ou organização) existem à margem de condições concretas que transcendam contextos de fome, desemprego e insegurança. Discutir em democracia ignorando o direito ao desenvolvimento e à autodeterminação é uma distorção.
Gaza expõe o cinismo da ordem hegemônica.
Diante da situação em Gaza, a condenação foi unânime: estamos testemunhando um genocídio em tempo real, com apoio ativo ou silêncio cúmplice de potências ocidentais que se dizem defensoras dos direitos humanos. Em Gaza, centenas de pessoas morrem diariamente, com mais de 55 mil mortos oficialmente registrados. Trata-se, como muitos já apontaram, do primeiro genocídio televisionado da história, exibido em tempo real diante de uma comunidade internacional que escolhe assistir. O governo de Israel, com o apoio dos Estados Unidos, que vetaram em 5 de junho mais uma resolução do Conselho de Segurança da ONU pedindo cessar-fogo imediato, continua promovendo a morte de palestinos por diferentes meios, incluindo a obstrução deliberada da ajuda humanitária.
Ironia, os mesmos que clamam por “genocídio” no Tibete e Xinjiang. Os números demonstram: em 1953, a população da Região Autônoma do Tibete era de aproximadamente 1,15 milhão de pessoas e, em 2020, atingiu 3,64 milhões; já a do Xinjiang passou de 4,87 milhões em 1953 para mais de 12 milhões em 2021. Não somente a demografia, mas os indicadores econômicos e sociais apontam para o desenvolvimento dessas regiões. Para exemplificar, em 1949, a expectativa de vida em Xinjiang era de apenas 30 anos e atualmente é de 74,4 anos; já no Tibete, subiu de 35 anos para 70 anos. Essa seletividade narrativa, que visa interesses geopolíticos bem definidos, revela mais sobre quem a propaga do que sobre os fatos que alega denunciar.
Este evento, considerando seu significado, questiona o domínio moral do Ocidente na discussão sobre direitos humanos. O antigo centro do sistema mundial enfrenta crises, com instituições políticas controladas pela plutocracia; aumento da polarização social; e deterioração do tecido social e do hiperindividualismo. A emergência do Sul Global é demográfica e econômica, mas também política, exigindo a construção de entendimentos e concepções para lidar com suas realidades concretas, sem imposições ou intervenções externas.
Isis Paris Maia é historiadora e doutoranda em Políticas Públicas pela UFRGS. Atualmente, investiga os mecanismos institucionais chineses no enfrentamento da pobreza no país. Email: [email protected]
Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.
Fonte por: Brasil de Fato