Oruam foi detido por levantar dúvidas sobre o massacre de moradores de áreas de favela no Rio

O governo que consistentemente perseguia, incitava, criminalizava, censurava e deslegitimava aqueles que se manifestavam.

29/07/2025 9h07

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(Imagem de reprodução da internet).

Diferentemente do que se acredita, Oruam foi detido não por seus equívocos, mas pelo seu potencial. A detenção de Oruam é simbólica. Ocorre logo após ele lançar uma canção que critica veementemente o sistema e expõe a lógica da violência promovida pelo Estado e incentivada nas comunidades carentes. A música? Rua Cercada por Divisão.

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Antes mesmo do lançamento final, após sua prisão, uma versão incompleta contendo apenas Oruam e Fubá já circulava com milhões de visualizações. A música confronta o Estado de maneira direta e intensa. Posteriormente, Poze completou a obra de forma habilidosa, expondo que a violência nas favelas, mesmo quando não praticada diretamente por agentes públicos, é uma política estatal: “as armas que aqui têm foram vocês que vendeu”.

A principal contribuição da música é a capacidade de Oruam convocar a favela para refletir sobre si mesma: “Por que nós estamos nos matando enquanto esses filhos da puta estão tão dormindo na mansão?”. Em seguida, Fubá encarna o jovem criminalizado, rejeitando a sua desumanização imposta pelo Estado, enquanto reflete e pensa sobre a vida, com suas angústias, revoltas, desejos e a sempre presente saudade dos amigos mortos e encarcerados.

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Sob essa ótica, Oruam questiona o conflito fratricídio nas favelas e expõe uma realidade: a desunião e a violência entre o povo são elementos centrais do sistema. “Esses caras estão rindo da nossa cara”, canta Oruam. E Poze completa ao final da música: “É que eles comemora quando a favela chora, e eu só vou aceitar minha vitória quando o pobre parar de morrer”.

A via delimitada por áreas de loteamento é o eixo central do projeto de submissão do povo. Não é coincidência que todas as facções e organizações criminosas que habitam as capas de jornais foram criadas em dependências do próprio Estado (prisões, quartéis, batalhões e palácios). Também não é toa que o próprio Estado organiza o sistema penitenciário faccionando os presos, que ao entrar no sistema devem indicar qual é a “sua” facção a partir do local onde moram, como fizeram com Poze durante sua prisão. A política que facciona os presos é tão forte que novas facções surgem até mesmo nos espaços destinados aos “não faccionados”. Faccionar para dividir. Dividir para dominar. Como sempre, desde a invasão europeia neste território que veio a se tornar o Brasil.

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Essa divisão não é natural. É política de Estado. O mesmo Estado que fecha escolas e abre presídios, que estimula o consumismo e abastece as favelas com armas e drogas. Tudo para manter o ciclo funcionando e a população entretida com sua própria destruição.

Enquanto isso, o setor militar obtém lucros com horrores, agentes públicos recebem altos salários e as elites mantêm uma sociedade desigual, controlando o povo por meio de uma “política criminal com derramamento de sangue”, como já denunciou o professor Nilo Batista, que aparece com Benedita da Silva como os únicos ex-governadores do Rio vivos que não foram presos.

A polícia afirma que Oruam se comunicava com integrantes de diversas facções, porém não divulgou o conteúdo dessas conversas. Ressaltamos que dialogar com suspeitos não constitui crime. Ademais, ninguém foi preso por conversar com os vários governadores do Rio que foram detidos. Em contrapartida, todos os políticos e grandes empresários da época deveriam ser presos também. Contudo, a criminalização do diálogo é seletiva e incide apenas sobre negros, pobres e moradores de favelas, como acontece com toda essa política de segurança.

Quanto ao conteúdo dessas conversas, a informação utilizada pela polícia em relação a Oruam pode inclusive o inocentar, demonstrando apenas que ele é artista, e não criminoso. Afinal, diálogos são possíveis quando não há rivalidade de vida ou morte. Oruam dialoga com todos e, dessa forma, pode ter força para defender o fim da violência entre jovens negros e moradores de áreas periféricas.

Talvez sua “falha” seja não concordar com as separações que dominam as vielas e fomentam a destruição interna nos guetos. E isso incomoda o poder, que necessita do povo se combatendo para sustentar uma pequena parcela de famílias bilionárias em um país com milhões de famílias em situação de pobreza extrema.

Ao expor o sistema, sua voz afirma: “Colocar na ponta do lápis, a caneta mata mais do que o fuzil”. Consciente ou não, ao direcionar seus versos para quem detém o poder, Oruam evita criticar apenas os agentes da ponta, e visa os palácios e aristocratas colonizadores que se aproveitam dos poderes da república.

Discutir a influência da guerra nos relacionamentos nas favelas? Inaceitável para aqueles que se beneficiam do conflito. Ao expor a realidade para as comunidades e apontar para o fim das guerras de gangues, Oruam, Poze e Fubá atingem uma estrutura fundamental do sistema.

Negro, jovem, favelado e funkeiro. Oruam foi o alvo perfeito de um Estado ainda colonial. O mesmo Estado que historicamente persegue, provoca, criminaliza, silencia e neutraliza aqueles que ousam falar. E foi o que fizeram com ele na porta de sua casa no Joá. Provocaram até que ele se desesperasse com a perseguição e reagisse à sua maneira. Covardes, os políticos do governo do Rio se aproveitaram disso e construíram uma narrativa para que o próprio povo ficasse contra ele. Uma prática histórica.

O secretário que a difama na mídia é um político medíocre, incapaz de responder às questões de segurança da população do Rio de Janeiro. Sua incompatibilidade com o interesse público o coloca em uma situação delicada: se for confrontado com seu próprio trabalho, será constrangido e desmoralizado. Por isso, precisa desviar o foco. Cria inimigos públicos para mascarar sua própria falência enquanto gestor da segurança. Na esteira do racismo, faz isso contra um jovem negro de favela.

A detenção em Oruam é uma simulação. Visa a autopromoção de agentes públicos autoritários, oferece espaço para políticos oportunistas e, primordialmente, busca criminalizar a arte crítica que desafia o sectarismo perpetrado por uma prática colonizadora.

A liberdade para Oruam é mais do que justiça para um artista. É um clamor por unidade, por consciência, por romper as amarras que nos separam. Além disso, representa o debate urgente sobre o fim dos conflitos nas favelas.

É necessário que Oruam, Poze, Fubá e todos os artistas da nova geração desenvolvam uma postura política mais madura, para que seus poemas se tornem ainda mais fortes na oposição ao sistema colonial e escravista que o capitalismo global apresenta ao Brasil.

Guilherme Pimentel é advogado e defensor de direitos humanos.

Jackson Anastácio é assessor parlamentar e estudante de Ciências Jurídicas e Sociais.

Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.

Fonte por: Brasil de Fato

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