A viagem do presidente Lula a Moscou e o êxito político e econômico das negociações em Pequim foram reduzidos a “fetiches ideológicos”. A imprensa busca relevância para um país que tenta pensar por si mesmo e caminhar em oposição ao complexo de inferioridade que influencia a classe dominante.
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A trajetória de Lula, notadamente seu encontro com Putin, provocou, na grande imprensa brasileira, um fervor democrático inusitado, que critica veementemente o presidente por ter participado de celebrações russas em homenagem à vitória sobre o nazifascismo, comemorações que, na visão dos redatores, deveriam ser exclusivas dos Estados Unidos.
O compromisso ideológico desconhece que Brasil e Rússia são parceiros comerciais e políticos relevantes no BRICS. Ignora que Lula não desistiu de afirmar que somos contrários à invasão de territórios estrangeiros (princípio inscrito em nossa Constituição), e que não deixou de considerar o pedido ucraniano (somos parceiros dos dois beligerantes) por um cessar-fogo. Ignora sua reiterada defesa da paz – coluna de nossa política externa – e a defesa dos interesses sociais e do multilateralismo, possivelmente por isso não agradar aos EUA atualmente.
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A iniciativa de Lula pela paz na Europa (que não interessa àqueles que desprezam os riscos estratégicos para apostar nos lucros da indústria bélica em alta) encontrou respaldo na parceria diplomática com Xi Jinping, que se associa no esforço visando uma trégua seguida de paz duradoura. Essa é a diplomacia, arte que não foi inventada por Lula e que é cultivada por qualquer nação que se preze, grande ou pequena, e que a competência do Itamaraty vem sustentando com arte e perícia, alheia aos apelos da subalternidade.
A questão central reside no fato de que o sistema, projetado para replicar a ideologia dominante, reage com hostilidade à persistência do Brasil em definir seu próprio espaço, o que, em última análise, pode ameaçar os interesses do grande capital, mais próximo de Wall Street. Todas as tentativas anteriores de criar espaço para uma política própria (no sentido de priorizar os interesses do País) foram combatidas com veemência. Assim se manifestaram as políticas de Vargas, os tímidos experimentos de JK, a política externa de Jânio-Afonso Arinos e de Jango-San Tiago Dantas. E, em nossos tempos, a política ativa e assertiva de Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco Aurélio Garcia, sob a presidência de Lula. A resistência se intensificaria ainda mais, atualmente, quando a disputa hegemônica se agrava e a guerra, sempre presente no “mundo que não conta”, atinge em cheio a Europa.
O jornal não aprova nossa política externa, desde que ela começou a ganhar destaque. Não lhe agradam as críticas de Lula aos responsáveis pelo genocídio palestino. Deveríamos simplesmente compreendê-lo. Nossa política, em geral, é acusada de antiocidental, de um Ocidente que cede sem grandeza, e faz careta para as relações com a China, principal parceiro econômico do Brasil, que, além disso, não impõe taxas adicionais aos nossos produtos e acabou de anunciar investimentos de 27 bilhões de reais (Valor, 13/5/21) e “acordos nas áreas de semicondutores, energia e infraestrutura, além da abertura do mercado [chinês] para produtos do agronegócio brasileiro”. É o que se lê no próprio Estadário (1/5/25), no editorial no qual desculpa o presidente Lula. Faltou mencionar que entre os entendimentos alcançados está nosso acesso direto ao grande mercado do Pacífico, via o porto peruano de Chancay, construído pela China.
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O setor dominante do Brasil, representado pela grande mídia, busca nos envolver em uma disputa hegemônica de blocos econômicos que não nos compete. Já tomou partido. Embora a União Europeia possa ter motivos para temer e odiar a Rússia, não temos, e até mesmo Trump não as fomenta, embora continue interessado em vender armas para tentar salvar um parque industrial obsoleto (sua viagem à Arábia parece ter-se constituído em um sucesso comercial).
A disputa pela hegemonia se restringe à polarização com a China, que não nos diz respeito, ainda que a tragédia geopolítica que nos instala seja considerada “seu quintal” por autoridades americanas, fiéis à Doutrina Monroe. Observa-se a grande vitória ideológica do neoliberalismo, assimilada pelas elites pensantes dominantes. explica-se a alienação da imprensa e da política em relação à questão nacional e seu real desinteresse pela democracia.
Na Brasil, a denominada “grande imprensa” – notadamente O Globo, O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo – não apenas apoiou o golpe de 1º de abril, mas aderiu à ditadura militar, chegando a encobrir seus crimes e, assim, a se tornar cúmplice. O regime deposto, segundo a visão do Departamento de Estado dos EUA (que supervisionou o golpe), prometia a ascensão das massas em um país que representava algo como metade do continente sul-americano, em plena Guerra Fria e após o acidente irreversível que era a Revolução Cubana, a poucos passos da Flórida.
O ativismo antidemocrático e antipopular, contudo, estava por trás disso. Na década passada, jornalistas, suas emissoras de rádio e de TV haviam sido decisivos na preparação da crise que levou ao golpe militar e ao suicídio de Getúlio Vargas (1954), frustrando o projeto de governo trabalhista-democrático. Participaram, com a direita militar, da tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck (1956) e jamais aceitaram as teses do desenvolvimentismo, e combateram a construção de Brasília. Combateram os ensaios de política independente de Jânio Quadros e foram ativos na conspiração que visava a impedir a posse de João Goulart (1961). Não podem, sequer, falar em liberdade de imprensa. Estiveram de mãos dadas na tentativa de calar a voz da Última Hora, o único dos grandes jornais da época aliado ao governo Vargas, e buscaram o monopólio dos meios, depois de assegurado o monopólio do discurso.
A grande imprensa brasileira está ligada à ditadura instaurada em 1º de abril de 1964, e contribuiu significativamente para a duração de 21 anos dos governos militares, recebendo os benefícios que foram concedidos.
O conglomerado Globo, incluindo jornais, rádios, revistas e televisão, apoiou com entusiasmo o golpe e legitimou o governo militar, mesmo com os primeiros indícios de seu declínio. Durante o período em que o general Émilio Garrastazu Médici, ditador entre 1969 e 1974, a fase mais violenta do comando das forças armadas, certamente encantaria Roberto Marinho: “Sinto-me feliz todas as noites quando vejo o jornal [Nacional]. Enquanto as notícias [internacionais] relatam greves, manifestações, ataques e conflitos em diversos países, o Brasil segue em paz, em direção ao progresso.”
A gratidão da caserna, contudo, não se manifestaria em palavras.
O primeiro canal da poderosa Rede Globo iniciou suas operações em abril de 1965, a pouca mais de um ano da instalação do regime militar. Após vinte anos de apoio incondicional à ditadura – com apoio consistente no encobrimento de crimes e na exaltação de supostos feitos –, a empresa da família Marinho, após expulsar de mercado suas principais concorrentes, ocupava o posto de maior rede de televisão do país, com 46 afiliadas e uma audiência que variava entre 60% e 90% dos telespectadores. O jornal impresso, no Rio de Janeiro, como um Moloch insaciável, consumia seus concorrentes e liderava as tiragens. Atualmente, o “Grupo Globo” é o maior conglomerado de mídia da América Latina e um dos maiores e mais diversificados do mundo.
O Estado e a FSP foram ainda mais longe, embora com ganhos modestos. O jornal das Mesquitas não apenas apoiou o golpe, mas participou ativamente da conspiração antidemocrática quando Júlio de Mesquita Filho e Adhemar de Barros fizeram dupla. É o depoimento do general Cordeiro de Farias, conspirador chefe em São Paulo: “As fontes principais de arrecadação eram duas: o governador Ademar de Barros e o jornal O Estado de São Paulo, através de Júlio de Mesquita [seu diretor e chefe do clã]. O dinheiro não me era entregue diretamente, e sim a pessoas que eu autorizava” (Diácom Cordeiro de Farias. Aspásia Camargo & Walder de Góes. P 553). É este jornal que, hoje, critica Lula e o acusa de fazer o jogo antidemocrático de aliança com autocratas.
O jornal Folha de S. Paulo, contudo, superou o Estadão em uma disputa desleal. Interveio diretamente na repressão, forneceu veículos para as ações da Operação Bandeirante (OBAN) e do DOI-Codi, resultando em prisões, torturas e assassinatos de democratas que resistiam à ditadura, e permitiu o acesso irrestrito dos agentes de repressão aos seus arquivos.
A mídia não demonstra interesse em nossa política externa, que confronta a subordinação ideológica. Não compreende o Mercosul e, ainda menos, os esforços de integração regional. Despreza a coerência, reclamando incessantemente do encontro entre Lula e Putin (retomando a relação), pois o presidente da Rússia, além de “autocrata”, invadiu a Ucrânia; ele é considerado “criminoso de guerra”. Contudo, essa atitude se repete no caso do presidente de Israel, recentemente recebido com pompa e circunstância na Casa Branca, sem gerar reações negativas nos editores.
Em 2003, não houve restrições à visita de Lula a Bush Jr., que, após a invasão do Iraque após o Afeganistão, sob o argumento falso de que a ditadura de Saddam Hussein possuía armas atômicas. Aliados, considerando reprovável a invasão de qualquer país a outro soberano, enfrentávamos sérias dificuldades com os EUA, pois presidentes podem ser considerados criminosos de guerra, com exemplos extensos como as invasões da Coreia, do Vietnã, de Granada, da República Dominicana, do Panamá, do Afeganistão, da Somália, da Síria, da Líbia…
A grande imprensa brasileira é a voz da classe dominante. A de hoje é filha daquela que combateu o monopólio estatal do petróleo, que lutou contra a criação da Petrobras, a participação dos empregados nos lucros das empresas, a recuperação do poder de compra do salário-mínimo, combateu a criação do 13º salário. É exemplar a manchete (letras garrafais) de primeira página de O Globo, de 26 de abril de 1962: “Considerado desastroso para o país um 13º Salário”. E ainda hoje é contra a reforma agrária. Desempenha o papel de agente ideológico da contrarrevolução. É-lhe estranho qualquer projeto de soberania e progresso social. Nosso destino de província sem projeto de ser é irrevogável, traçado por um passado que interfere no presente afastando de nosso horizonte as promessas de futuro.
O Brasil possui excesso de analfabetismo, segundo o Estadão; O Globo estampa: “Analfabetismo funcional envergonha Brasil” (ambos em 07/05/2025). A classe dominante se autocrítica? Ou não se percebe como parte decisiva do problema?
Campos Neto, após seu mandato como regulador do sistema financeiro, com a mais alta taxa de juros do mundo, foi contratado pelo Nubank para retornar à Faria Lima. O Banco Santander registrou lucro líquido de R$ 3,861 bilhões no primeiro trimestre de 2025, um aumento de 27,8% em relação ao mesmo período de 2024. Já o Bradesco registrou lucro líquido de R$ 5,86 bilhões, com crescimento de 39,3% sobre o trimestre anterior. O Itaú alcançou lucro recorde de R$ 11,12 bilhões, um salto de 13,9% sobre o semestre anterior.
A responsabilidade recai sempre sobre a classe média — Coerente com seus interesses, o banqueiro Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (governo FHC), estabelece que o caminho para a retomada do crescimento econômico e o aumento da riqueza do país é: “Manter o salário mínimo, atualmente R$ 1.518,00, sem reajuste real nos últimos seis anos”.
O Nubank – Esta fintech, que recentemente contratou o ex-presidente do Banco Central do Brasil, é uma das maiores plataformas de serviços financeiros digitais do mundo. É controlada pela Nu Holdings Ltd., registrada nas Ilhas Cayman, e patrocina nada menos que o Jornal Nacional, da Rede Globo, que emite, de segunda a sábado, um influente noticiário econômico.
A Selic atingiu 14,75%, a maior taxa em 20 anos, em decisão unânime do Copom. Essa elevação do custo do capital acompanha o aumento da dívida pública, que saltou para 7,508 trilhões de reais. Essa situação gera um “equilíbrio fiscal” que impede expectativas de desenvolvimento no médio prazo. Essa dívida financeira cobrada do governo é paga pelos contribuintes e, em grande parte, adia o resgate da dívida social.
A classe dominante recebe do jornalista e professor Renato Soares, de Maceió, o seguinte comentário: “Collor, condenado por corrupção, por uma base de provas, irá cumprir pena em um apartamento de cobertura, avaliado em 10 milhões de reais, com mordomo, na praia de Ponta Verde, a principal de Maceió. Lembram do Lula, condenado sem provas, que ficou preso em uma cela da Polícia Federal, em Curitiba, bem longe de sua casa? Será que podemos afirmar que o crime não compensa? Ou que temos uma grave segregação, política e social, até nas prisões?” A isso soma-se um dado alarmante: no Brasil há mais de 200 mil pessoas presas aguardando julgamento.
Fonte: Carta Capital