Pesquisa aponta falta de diretrizes no tratamento do câncer pelo SUS
Diversos hospitais continuam a empregar fármacos mais antigos, que apresentam menor eficácia, apesar da disponibilidade de opções superiores e já autorizadas.

Os hospitais brasileiros do Sistema Único de Saúde (SUS) apresentam atraso em relação aos protocolos de tratamento do câncer, conforme as diretrizes nacionais e internacionais de referência. Mesmo com as normas existentes, estas não conseguem guiar a prática assistencial de forma efetiva devido aos recursos disponíveis e recomendados.
Os dados que sustentam esta análise foram coletados entre 20 de setembro de 2023 e 8 de janeiro de 2024, em um novo levantamento conduzido pelo Instituto Oncoguia. Dentre os 318 hospitais oncologizados no Brasil, que receberam o convite para participar, apenas 95 responderam ao questionário, e destes, apenas 64 enviaram documentos com informações mais detalhadas para análise. Os protocolos dos hospitais foram comparados a três listas de referência: as Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDTs) do Ministério da Saúde, a Lista de Medicamentos Essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a escala de benefício clínico da European Society for Medical Oncology (ESMO).
É preocupante que 69% dos hospitais não tenham enviado protocolos de tratamento completos para os cinco tipos de câncer analisados no estudo – mama, pulmão, melanoma, próstata e colorretal. Mesmo considerando os quatro tipos mais comuns (mama, próstata, colorretal e pulmão), 61% deles não forneceram protocolos completos.
Os números não deixam margem para dúvidas: a rede de atenção oncológica no Brasil permanece desorganizada e vulnerável. A análise demonstra que as desigualdades no acesso ao tratamento do câncer pelo SUS persistem e, oito anos após a primeira avaliação, as mudanças são poucas. Em 2017, o Instituto Oncoguia conduziu uma investigação inédita para compreender como os hospitais oncológicos do SUS atendiam os pacientes. O resultado daquela pesquisa já era preocupante. Em 2023, retomamos o ponto de partida, com a mesma questão: o meu SUS continua diferente do seu? A resposta, infelizmente, ainda é sim.
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Diretrizes de tratamento insuficientes.
Na câncer de mama, houve boa adesão à quimioterapia, em casos curativos (neo/adjuvante) e em casos paliativos. Apesar da disponibilidade do medicamento pertuzumabe, incluso nas Diretrizes Diagnósticas e Terapêuticas (DDTs) e acessível por compra centralizada, muitos hospitais ainda não o oferecem. O PCDT – primeiro protocolo clínico específico para o câncer de mama – foi publicado em novembro de 2024 e não foi utilizado como comparador no estudo, pois não era a referência nacional para os hospitais no momento da coleta de dados.
O cenário também expõe outro problema: com exceção da diretriz para mama, cuja versão que prevalece é a de 2014, as diretrizes diagnósticas e terapêuticas disponíveis para os demais tipos estudados estão desatualizadas. A diretriz vigente para o câncer de próstata é de 2016, para colorretal, de 2014, e a única mais recente é a do melanoma, publicada em 2022. Um descompasso evidente entre o avanço da ciência e o que está disponível na rede pública.
No câncer de próstata, os dados indicam grande adesão à hormonioterapia nos centros de tratamento brasileiros, porém o uso de medicamentos mais recentes, como abiraterona, enzalutamida, darolutamida e apalutamida, permanece bastante restrito. A abiraterona figura em alguns protocolos – e mesmo assim não está incluída na DDT em vigor.
Muitos hospitais continuam utilizando medicamentos mais antigos e menos eficazes, apesar da existência de alternativas superiores, reconhecidas e recomendadas pelo Ministério da Saúde. Isso reflete o desalinhamento entre as diretrizes e a prática clínica, impactando diretamente os pacientes em tratamento. Na região Nordeste, apenas 28% dos hospitais informaram disponibilizar medicamentos mais recentes, com uma taxa geral de 52%.
Não disponíveis.
A quimioterapia apresenta boa eficácia no tratamento do câncer de pulmão, em fases iniciais e avançadas. No entanto, as terapias direcionadas e imunoterapias apresentam um cenário diferente.
Os inibidores de EGFR, aprovados pela Conitec desde 2013 e o crizotinibe, incorporado em 2022, estão disponíveis em apenas 4,7% dos hospitais avaliados. A carência dessas terapias impacta negativamente a probabilidade de resposta ao tratamento. A ausência de imunoterapia no SUS continua a privar pacientes de recursos que poderiam melhorar sua qualidade de vida. Apenas 51% dos hospitais relataram ter acesso a inibidores de EGFR, em desacordo com a diretriz de 2014 que já o recomendava.
Em relação ao câncer colorretal, a quimioterapia segue os padrões das diretrizes, porém há escassez de disponibilidade de anticorpos anti-VEGF e anti-EGFR – terapias já consolidadas na prática clínica internacional e recomendadas por todas as fontes consultadas (DDTs, OMS e ESMO). Isso limita as opções terapêuticas e diminui a qualidade do atendimento oferecido. A oferta dessas terapias no Nordeste é de apenas 14%, enquanto no Sudeste atinge 53% (anti-VEGF) e 47% (anti-EGFR).
No melanoma, a situação é ainda mais preocupante. A imunoterapia, embora recomendada nas diretrizes, não está efetivamente disponível. A diretriz também não especifica o uso em cenário adjuvante. Muitos hospitais ainda utilizam o interferon, um tratamento ultrapassado e com elevada toxicidade, ignorando terapias mais modernas como os inibidores de PD-1. A consequência é uma abordagem menos eficaz e mais desgastante para os pacientes. Em alguns serviços, ainda se utiliza a dacarbazina, já substituída por terapias mais eficazes desde 2020, quando a imunoterapia foi incluída no SUS.
Protocolos integrados
As conclusões do estudo são claras: o SUS não possui um padrão nacional real de cuidado oncológico — o que existe são expectativas normativas. A ausência de protocolos unificados, obrigatórios e atualizados leva cada hospital a operar dentro de suas próprias possibilidades, gerando um cenário de improviso e desigualdade. A ineficácia das diretrizes clínicas e a falta de regulação efetiva denunciam uma fragilidade estrutural. Não se trata de falhas isoladas, mas de um modelo que não assegura acesso justo ao tratamento.
Observou-se que as desigualdades regionais continuam presentes. Os estados do Acre (AC), Mato Grosso (MT) e Pernambuco (PE) não apresentaram respostas. Por outro lado, todos os hospitais dos estados do Amazonas (AM), Amapá (AP), Distrito Federal (DF), Pará (PA), Roraima (RR) e Tocantins (TO) participaram integralmente. Isso evidencia que o problema é sistemático, e não aleatório.
Um aspecto fundamental é a falta de indicadores públicos que avaliem o acesso real a terapias oncológicas no SUS. O estudo Oncoguia é um dos poucos documentos com esse nível de detalhamento. Essa ausência de dados dificulta o acompanhamento da rede e prejudica a criação de políticas eficazes.
A falta de protocolos abrangentes para o manejo de diferentes tipos de câncer em 61% dos hospitais indica desorganização e possível negligência na administração. A publicação dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) é urgente e deve ser acompanhada de financiamento, capacitação e monitoramento.
O estudo que conduzimos é, principalmente, um alerta. A espécie de câncer e a região onde o paciente reside determinam quem sobrevive e quem não sobrevive. O Brasil deve assegurar que todos os pacientes tenham acesso ao melhor tratamento possível, independentemente de seu endereço. Isso demanda não apenas novos protocolos, mas uma transformação estrutural na maneira como o SUS organiza e mantém o atendimento oncológico em todo o país.
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Fonte: Metrópoles