Teste às cegas: Cambuci e o ‘cancelamento’ do vinho argentino malbec

Modismo atinge o mundo do malbec: especialistas questionam avaliações superficiais, focadas em tendências e não na qualidade do vinho.

4 min de leitura

(Imagem de reprodução da internet).

Almoço com Surpresa: Uma Degustação às Cegas Revela a Elegância dos Vinhos Argentinos

Em uma manhã de terça-feira, um convite para um almoço surgiu inesperadamente. A proposta era simples: um almoço com amigos, com a possibilidade de degustar vinhos. A agenda estava livre e a lista de convidados precisava ser fechada. O objetivo era uma brincadeira entre amigos, combinando curiosidade e prazer. O restaurante escolhido, a Parrillita, na Avenida Lins de Vasconcelos, 988, no Cambuci, oferecia bons preços e carnes de qualidade, segundo o anfitrião.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Surpresa na Degustação

Sentados à mesa, a brincadeira se revelou: quatro vinhos tintos, envoltos em papel-alumínio. A degustação foi às cegas, com palpites antes da revelação. A questão era se os vinhos eram da mesma uva, de países diferentes ou de safras distintas. As opiniões divergiam, com alguns identificando rótulos do Novo Mundo, cheios de fruta, e outros do Velho Mundo, lembrando Bordeaux ou Espanha, ou Portugal.

Safras e Opiniões

A expectativa aumentava a cada gole. O amigo em questão era conhecido por possuir uma adega generosa, repleta de vinhos de prestígio. A surpresa que ele preparava era um mistério. Quando o papel foi retirado, os olhos de todos se arregalaram: os vinhos eram quatro tintos argentinos da Bodega Noemía, elaborados com malbec na Patagônia em 2006, 2007, 2010 e 2011.

LEIA TAMBÉM!

O “Cancelamento” do Vinho Argentino

A degustação às cegas, sempre um exercício de humildade, acabou funcionando como antídoto contra uma tendência crescente em algumas rodas de enófilos brasileiros: o “cancelamento” do vinho argentino. Não se trata de um boicote formal, mas de uma atitude repetida em algumas mesas e grupos de WhatsApp, em que o malbec e outros argentinos são tratados como algo fora de moda, previsível e quase um clichê.

A História da Catena Zapata

Em algumas rodas enófilas, há quem torça o nariz não apenas para o malbec da Patagônia, mas também para a vinícola Catena Zapata, cuja história abriu o caminho para os vinhos da América Latina. A história começa em 1902, quando Nicola Catena deixou a Itália, fugindo da fome, e plantou na região de Mendoza a primeira vinha de malbec. A uva francesa encontrou na Argentina um novo lar e ganhou dimensão internacional.

O Dilema de Domingo Catena

Na década de 1960, a economia argentina entrou em colapso, tornando a colheita das uvas mais cara do que deixá-las nas videiras. Domingo Catena consultou seu filho, Nicolás, recém-doutor em economia, que recomendou não colher. Mas Domingo, sem conseguir contrariar sua consciência, levou adiante uma safra que sabia trazer pouquíssima renda. Anos depois, Nicolás ainda recordaria a tristeza de ver o pai trabalhar em vão.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

A Oportunidade em Berkeley

Nos anos 1980, após expandir a distribuição dos vinhos da família no Reino Unido, Nicolás recebeu uma oportunidade decisiva: ser professor visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Lá, conheceu de perto os vinhos da Califórnia, então em ascensão, e percebeu que um novo mundo era possível. Voltou a Mendoza com a convicção de que a Argentina também poderia produzir rótulos de classe internacional.

O Gesto Ousado de Exportar

O contexto, no entanto, era adverso. Assim como o Chile, a Argentina tinha a pecha de produtora de vinhos de mesa baratos. Apostar em qualidade parecia uma temeridade, mas Nicolás vendeu a divisão de vinhos comuns e manteve apenas o braço dedicado aos vinhos finos. Colegas e concorrentes riram, chamando-o de “completamente loco”. Mas foi justamente esse gesto ousado de exportar o primeiro vinho argentino de qualidade internacional que pavimentou o caminho para colocar o país no mapa mundial da enologia.

O Reconhecimento de Robert Parker

Décadas depois, a vinícola seria reconhecida pelo crítico Robert Parker como “a referência em vinhos da América do Sul”. O almoço no Cambuci, com as safras da Bodega Noemía degustadas às cegas, mostrou exatamente isso: quando bem escolhidos, os vinhos argentinos são muito bons, envelhecem com elegância e seguem sendo parceiros ideais de uma boa carne. O “cancelamento” em certas rodas fala menos sobre o que está dentro da taça e mais sobre modismos passageiros que, cedo ou tarde, também passam.

Sair da versão mobile