Um narrador desconfiado de si
O solenoide, segundo livro de Mircea Cărtărescu publicado no Brasil, demonstra a amplitude da obra do autor romeno.

Um professor de escola pública da periferia de Bucareste, na Romênia, elabora um manuscrito que descreve sua rotina, considerada tão comum quanto extraordinária. Não se trata de uma obra literária, ressalta; os cadernos preenchidos com afinco e dedicação apresentam uma escrita que, por estar ligada à realidade e distante da literatura, é vista como condenada.
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Ele, como narrador, demonstra interesse genuíno na investigação de seu próprio corpo e mente, analisando desde as peculiaridades do umbigo até os sonhos mais intensos e perturbadores. Assim, começa o relato com o registro de uma nova infestação de piolhos – algo recorrente desde que iniciou o ensino – e rememora histórias da infância humilde, passada nos distritos operários da cidade.
Esta seria uma possível síntese de Solenoide, o notável romance do romeno Mircea Cărăşescu, publicado no Brasil pela Mundarêu.
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Acontece devido ser um projeto imaginário de fantasia, que une uma narrativa consciente refinada, um texto requintado e a notável capacidade de causar estranhamento no leitor, fazendo-o experimentar o mesmo horror que assola o personagem diante das incursões do incomum em sua rotina ou dos acontecimentos inexplicáveis de seu passado.
O poeta, escritor e ensaísta romeno, reconhecido internacionalmente e frequentemente cotado para o Prêmio Nobel de Literatura, Cărtărescu, lançou em português o livro “Â Solenoide”, que é sua segunda obra publicada no idioma.
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Em 2018, Mundaréu publicou Nostalgia (416 páginas, 76 reais), romance de 1989 que reúne cinco narrativas independentes. Os textos se baseiam em lembranças da infância, no incomum e na reflexão sobre a própria criação literária. Apresentam personagens singulares, como o Roletista e o Mendébil, um universo onírico que invade a realidade e críticas sobre o processo de escrita.
Em Solenoide, esses aspectos são acentuados. Além disso, o narrador enfrenta persistentemente as convenções literárias. Ele acredita que poderia ter se tornado um autor renomado se sua primeira “obra fundamental” — o poema A Queda — não tivesse sido rejeitado veementemente em um evento acadêmico. O fracasso inicial impediu um caminho artístico possivelmente bem-sucedido, mas permitiu que o protagonista explorasse a linguagem de forma independente.
Qual é a base da criação do romance? De onde surge a inspiração? Qual o papel do corpo no processo artístico? Essas questões atravessam as quase 800 páginas do livro, entrelaçadas com as reflexões do protagonista sobre a morte, tema central na experiência humana.
No seu manuscrito, o narrador explora os sentidos e os mistérios da existência. Assim, busca romper com a opacidade do dia a dia e entender o que define uma vida além da aparência da realidade. O leitor presencia, então, o mundo fantástico e secreto escondido sob a “normalidade”. O início dos acontecimentos na casa, que se apresenta como um navio, construído sobre um solenoide – uma bobina indutora de campo eletromagnético.
O aparelho, dentro da história, é o que provoca os eventos incomuns. Além do solenoide da residência do protagonista, existem mais cinco espalhados pelos subterrâneos de Bucareste.
A capital da Romênia é, aliás, personagem fundamental da narrativa, como também acontecia em Nostalgia. “Meu mundo é Bucareste, a cidade mais triste da face da terra, mas, ao mesmo tempo, a única de verdade”. O lendário arquiteto da cidade perguntou-se como poderia uma aglomeração urbana refletir melhor, mais verdadeira e mais profundamente o terrível destino da humanidade, a grandiosa e desesperançosa tragédia de nossa estirpe.
No romance, os locais são retirados da memória do próprio autor. A narrativa evoca Bucareste nos anos 1980, uma metrópole em ruínas, caracterizada pela falta de produtos e pela má qualidade dos serviços.
A conjuntura política — caracterizada pelo regime de Nicolae Ceaușescu, que governou a Romênia entre 1965 e 1989 — é fundamental para a compreensão da proposta de ruptura com um realismo monolítico e hegemônico. Emergem, então, as múltiplas dimensões da vida e da história. O próprio narrador se desdobra em outros: o gêmeo misterioso, sua versão feminina, um arauto messiânico, etc.
A leitura de Solenoide pode não ser reconfortante, porém é, por outro lado, recompensadora. Destaca-se o cuidado na tradução do romeno de Fernando Klabin, que capta, com precisão, a sobriedade ora irônica, ora melancólica do texto.
Em tempos de excesso de rigor e desinteresse pela imaginação, Cártescu segue o caminho oposto, criando uma aventura ficcional exuberante que abrange os múltiplos ângulos da experiência humana e vislumbra algum sentido, sem surpresa, para a nossa existência.
Publicado na edição nº 1361 da CartaCapital, em 14 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um narrador desconfiado de si”.
Fonte: Carta Capital