A cidade que perde sua memória coletiva torna-se uma vitrine descartável

Nas cidades que adotam tal medida, o espaço público perde o seu propósito e o sentimento de pertencimento é absorvido pela lógica do mercado.

13/06/2025 8h09

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(Imagem de reprodução da internet).

As marcas globais invadem o espaço urbano com suas cores padronizadas, porém o McDonald’s azul-turquesa de Sedona, no Arizona, transformou-se em mais do que uma atração arquitetônica, expressando a soberania territorial, geográfica e cultural através da adaptação das cores da marca. A troca dos arcos dourados por uma paleta que considera a paisagem local demonstra que, para seus moradores, a cidade não é um outdoor. É um acordo entre habitantes, território e tempo.

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Sedona, com menos de 10 mil habitantes, demonstra algo que São Paulo, com seus 12 milhões, parece ter perdido: que a paisagem urbana é também cultural, expressando camadas históricas, simbólicas e afetivas que não se limitam à arquitetura ou à geografia. Abrange cores, texturas, sons, usos e sentidos compartilhados. E, como todo bem cultural, necessita de governança.

O que aparenta ser uma exceção estética em Sedona é, na realidade, consequência de normas técnicas definidas desde os anos 1990 por meio de um Código de Desenvolvimento Urbano da cidade, que determinou que cores e materiais se harmonizem com as rochas vermelhas e ao ambiente desértico da região. Assim, índices de refletância, saturação e brilho são controlados, proibindo superfícies metálicas e tons vibrantes, .

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Não se trata de “engessar” a cidade, mas de preservar o espírito do lugar (genius loci) em um território moldado por geologia, espiritualidade e práticas culturais ligadas à natureza. A cor azul-turquesa adotada pela franquia local não apenas respeita a paleta natural da paisagem local, mas também contribui para uma experiência urbana harmoniosa. Se os vereadores e o prefeito não compreenderam, reitero: é política pública aplicada com coerência estética e cultural, respeitando a geografia e características históricas locais.

Em São Paulo, a Avenida Paulista e 70% da cidade são entregues ao mercado. O mesmo McDonald’s, atualmente coberto de roxo vibrante em uma ação promocional, é tratado como inovação de marketing, expondo uma cidade que autoriza, sem mediação ou regulamentação, a apropriação visual do espaço público por empresa privada. Se os vereadores e o prefeito não compreenderam, reitero: o que ocorreu na cidade de Sedona, com a mesma empresa, é política pública aplicada com coerência estética e cultural que respeita a geografia e características históricas da paisagem urbana local.

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A invasão cromática demonstra uma abertura institucional que converte a cidade em cenário publicitário. Ausentes critérios que valorizem a paisagem como bem público, cores de empresas obliteram a memória e o sentimento de pertencimento, gerando uma paisagem desprovida de significado, transformada em vitrine transitória em prol do marketing.

A questão se intensifica com a recente aprovação em primeira votação na Câmara Municipal de São Paulo, que flexibiliza a Lei Cidade Limpa. A nova redação autoriza anúncios em locais antes protegidos, que incluem fachadas de edifícios tombados. Permitir que 70% de um monumento histórico seja coberto por publicidade não é uma ação neutra e representa um gesto político que desmonta o pacto urbano que sustentava a Lei desde sua criação, em 2006.

A razão é sempre a mesma: atrair investimentos, gerar empregos, modernizar. O que significa modernizar? A quem serve essa modernização? Ao liberar a ocupação comercial de espaços sensíveis sem qualquer debate qualificado com urbanistas, arquitetos, sociós, moradores e instituições de patrimônio, os vereadores e o Executivo sinalizam, no mínimo, o descaso com a identidade local construída pelas pessoas, tratando-a como terreno de negócio, e não como plataforma pública de vida.

A Lei Cidade Limpa possibilitou a recuperação do horizonte da cidade, diminuiu a saturação visual e valorizou o espaço urbano. Modificá-la sem cuidado técnico e sem consulta pública é equivalente a desfigurar a cidade pela falta de regras públicas para o seu disciplinamento. A Unesco e o Iphan já reconheceram que paisagens culturais urbanas são bens complexos, formados por traços, arquiteturas, relações sociais, usos do solo e atmosferas. O conceito de Historic Urban Landscape, adotado internacionalmente desde 2011, propõe integrar a conservação e o desenvolvimento, respeitando os valores culturais e visuais locais como parte da qualidade de vida urbana.

Esses princípios promovem o turismo cultural, fortalecem a identidade de cada cidade e criam condições de convivência equilibrada entre dinâmicas econômicas e sensibilidade urbana, demonstrando que a cidade não é só o de ir e vir, mas também o de ver e se reconhecer no que se vê.

A distinção entre Sedona e São Paulo reside na opção política que ela representa: “a cidade vem antes da marca”, enquanto a Prefeitura de São Paulo responde que “a marca vem antes da cidade”. Esse confronto revela o que está em jogo: quem determina o que pode ser visto, vivenciado e sentido no espaço urbano. Trata-se de um embate entre o pertencimento e o espetáculo, entre o bem comum e o branding.

A questão que se coloca é direta: que cores nossa democracia urbana está disposta a defender? A resposta exigirá mais do que designers. Requer governos atentos, comunidades participativas e uma legislação que reconheça na paisagem um reflexo coletivo, não uma superfície de aluguel.

A tentativa de modificar a Lei Cidade Limpa expõe essa lógica. Ela não moderniza nem democratiza, apenas aumenta a presença da publicidade nos espaços deixados pela falta de perspectiva pública sobre a paisagem urbana e todos os seus elementos. E, no fim, o que está em jogo não é apenas a cor. É o acordo que ela representa. E quando esse acordo exclui o olhar coletivo, a cidade inteira passa a falar com a voz de quem paga mais alto por um local para anunciar, expor-se, destacar-se.

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Fonte por: Jovem Pan

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