A glasnost de Lula
Lula pode ser interpretado como aliado da Rússia em oposição ao Ocidente. Alternativamente, ele pode ser visto como um agente de uma política externa autônoma.

Perestróika e glasnost. Eram as duas palavras escolhidas pelo último presidente da União Soviética, Mikhail Gorbatchev, para indicar como pretendia reformar seu país. A perestróika foi adotada como parte do lema “União e Reconstrução” do governo atual. Resta ainda a glasnost, ou transparência, em sua política externa.
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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva viajará nesta semana para Moscou, para participar das comemorações dos 80 anos da vitória sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. A cidade não é mais a capital da União Soviética, mas retorna como capital da Rússia, sob o comando de Vladimir Putin, há 25 anos.
Após acompanhar a parada cívico-militar em comemoração à vitória, Lula terá um encontro com Putin, em sua visita de três dias ao país, antes de seguir para a China. O presidente brasileiro estará em um país novamente em guerra – desta vez contra a vizinha Ucrânia, invadida há três anos pelas tropas russas.
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Nas celebrações de Moscou, Lula estará acompanhado do presidente da China, Xi Jinping, do presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, e do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, além de outros líderes da Ásia Central.
A alta representante da União Europeia para Assuntos Estrangeiros, a estoniana Kaja Kallas, alertou os países membros para não participarem das comemorações em Moscou. Em vez disso, solicitou apoio à Ucrânia.
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A participação em celebrações em Moscou não será vista com bons olhos por parte dos europeus, considerando que a Rússia está promovendo uma guerra em larga escala na Europa, afirmou Kallas após reunião de ministros de Relações Exteriores em Luxemburgo.
Lula estará acompanhado principalmente por aliados de Moscou. E nisso entra o conceito de transparência. Por que o presidente decidiu comparecer às celebrações, quando uma guerra ainda está em andamento? O que sua viagem indica em relação à política externa brasileira?
De acordo com a mensagem presidencial de designação do novo embaixador brasileiro em Moscou, Sérgio Rodrigues dos Santos, enviada em janeiro ao Senado, “o eixo principal da diplomacia brasileira para a Rússia é político”, com base na percepção da “enorme importância geoestratégica daquele país”.
O Brasil demonstra interesse em manter o relacionamento político com a Rússia, país com o maior arsenal nuclear e maior exportadora de energia global, que persiste em buscar reconhecimento como potência relevante no cenário internacional atual.
Ademais, a Rússia também reconhece a importância do Brasil. Os dois países estão juntos no BRICS, e Moscou apoia a intenção brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
As relações bilaterais são tão antigas quanto importantes. Os laços diplomáticos foram estabelecidos em 1828. O relacionamento foi interrompido apenas em duas ocasiões: entre 1918 e 1945 e entre 1947 e 1961. Em 2002, durante a visita do então presidente Fernando Henrique Cardoso a Moscou, as relações foram elevadas ao nível de parceria estratégica.
Como abordar a questão da Ucrânia? Nos três anos de ocupação russa, amplas porções do então território ucraniano foram incorporadas à Rússia. Ainda não há indícios visíveis de negociações de paz.
Até o momento, a Ucrânia não obteve grande apoio no Brasil. O ex-presidente Jair Bolsonaro expressou “solidariedade” a Putin. E a esquerda mantém alinhamento quase automático com Moscou, apesar do partido do presidente russo declarar-se defensor do nacionalismo e de valores conservadores.
Os partidos brasileiros de esquerda frequentemente destacam a invasão da Ucrânia pelas tropas russas, mesmo que a ação militar viole as leis internacionais.
Há um argumento válido para isso: a Rússia teria alertado diversas vezes o Ocidente para não expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em suas proximidades. Os russos afirmam estar agindo em legítima defesa.
Isso seria suficiente para concordar com a invasão de outro país? Na visão de muitos setores de esquerda, sim. Esses setores manifestam apoio a Moscou em sua luta contra o que os russos chamam de “Ocidente coletivo”.
Poderia parecer uma disputa de argumentos, ou de interpretações, mas trata-se de um conflito real. Há também preocupações igualmente justificadas de que a Rússia não se limite à Ucrânia e determine enviar tropas a outros países da Europa Oriental.
O Brasil continua demonstrando apoio a um cessar-fogo imediato e à solução negociada de uma paz duradoura, que considere as preocupações de segurança de ambas as partes.
Faltaria um pouco de transparência a essa posição. O que significaria considerar as preocupações de segurança de ambos os lados? Para a Rússia, provavelmente manter os territórios ocupados. Para a Ucrânia, a devolução desses territórios.
A presença de Lula nas celebrações de Moscou pode ser interpretada como apoio a Putin contra o Ocidente. Alternativamente, pode ser vista como a condução de uma política externa autônoma, que não adota alinhamentos pré-definidos.
A decisão dependerá das convicções ideológicas de cada indivíduo. Para que a viagem a Moscou não promova a radicalização política no Brasil, Lula agiria bem em esclarecer a posição do Brasil diante de um conflito que ameaça a segurança na Europa.
Marcos Magalhães, jornalista especializado em temas globais e com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou o programa Cidadania Mundo na TV Senado. Sua carreira iniciou-se em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.
Fonte: Metrópoles