Alemães negros sob o nazismo: uma história negligenciada
Afro-alemães, que foram alvos de discriminação, perseguição e esterilização forçada, não tiveram sua experiência analisada em profundidade, diferentemente de outras vítimas do regime nazista.

A historiadora Katharina Oguntoye, de Berlim, comenta que “a época nazista da Alemanha durou só 12 anos, e o que pode acontecer com uma sociedade e o que pode acontecer nele, não é preciso 50 ou 100 anos”.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Os crimes, subjunção, racismo, escravização e genocídio contra judeus, etnias ciganas e roma, LGBTQ+ e outras comunidades são bem documentados. No entanto, para os negros da Alemanha, não tem sido fácil obter o reconhecimento dos crimes e abusos sofridos.
O historiador Robbie Aitken, da Universidade Sheffield Hallam, na Inglaterra, investiga as comunidades negras há 20 anos, e constata uma resistência da sociedade alemã em admitir que os negros fazem parte do país desde o final do século XIX.
Leia também:

Estados Unidos e China concordam em suspender temporariamente as tarifas comerciais e estabelecer uma pausa na disputa, com a medida válida por 90 dias

Partido Colorado vence as eleições regionais em Montevidéu

Ataque militar ao regime militar do Mianmar ceifa 22 vítimas em um estabelecimento de ensino, relatam relatos de testemunhas
Trata-se de indivíduos que cruzaram fronteiras, que se deslocaram amplamente, e de um tempo em que os próprios nazistas destruíram documentos, é difícil encontrar informações. Acredito que muitos historiadores estão negligenciando este ponto, e há uma carência de conhecimento público e acadêmico sobre o período.
Na década de 1880, a presença do Império Alemão na África colocou o país em contato com a população local, sua mão de obra e os recursos naturais de seus territórios. Após ser derrotada na Primeira Guerra Mundial, contudo, a Alemanha teve que renunciar às colônias que incluíam Camarões, Togo, África Oriental Alemã (atuais Tanzânia, Burundi e Ruanda) e Namíbia.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
Ascensão nazista intensifica a perseguição racial.
Milhares de afrodescendentes, originários da África, Caribe, América do Sul e Estados Unidos, migraram para a Alemanha.
Outro grupo de afro-alemães tem sua origem na presença de tropas coloniais francesas que ocuparam a região alemã da Renânia após a Primeira Guerra Mundial, entre 1918 e 1930, quando alguns desses militares se envolveram com mulheres alemãs, deixando uma descendência local.
A população negra no país já era marginalizada em razão da Grande Depressão de 1929, contudo, a natureza racista do regime nacional-socialista, que assumiu o governo em 1933, agravou sua situação.
Quando os nazistas ascenderam ao poder, qualquer pessoa que desejasse ser racista, que concordasse com suas ideias, podia proferi-las publicamente com entusiasmo, além de praticar maus-tratos físicos e verbais contra os outros. Isso acontecia sem restrições, conforme relata Aitken.
Com isso, tornou-se menos comum observar moradores negros em espaços públicos, principalmente aqueles com cônjuges brancos e filhos. Essa parcela da população era vista como racialmente inferior, e entre 1933 e 1945 o governo implementou leis e ações raciais para limitar suas chances econômicas e sociais.
O historiador de Sheffield prossegue afirmando que, em nível local, famílias foram efetivamente removidas de seus apartamentos para dar lugar a membros do partido nazista ou adeptos do nazismo. Alguns alemães negros que possuíam estabelecimentos comerciais foram explicitamente perseguidos.
Esterilização forçada, estereótipos e propaganda.
Um exemplo foi o comerciante camaronês Mandenga Diek, um dos poucos africanos com cidadania alemã: com a ascensão dos nazistas, ele perdeu seu negócio em Danzig (atualmente Gdańsk, Polônia) e foi declarado apátrida, juntamente com sua família.
Após sua morte, em 1943, sua esposa Emilie e as filhas Erika e Dorothea escaparam por pouco da esterilização forçada. Na região da Renânia, a Gestapo, polícia secreta do ditador Adolf Hitler, recebeu ordens secretas para localizar e esterilizar crianças rebeldes.
De acordo com Aitken, tais ações demonstram que existia uma “intenção genocida”: “Não significa que todas as pessoas negras fossem esterilizadas, mas considerando-se as medidas de alto nível e como as forças policiais locais agiam, fica evidente que elas compreendiam essa intenção.”
A implementação das Leis Raciais de Nuremberg foi um dos pilares da política nazista em relação ao tema. Fundamentada em modelos desenvolvidos para separar brancos e negros durante a era colonialista alemã, a legislação abrangia restrições a casamentos e relações sexuais entre judeus alemães e os chamados “arianos”.
O termo “ariano” descrevia uma raça supostamente “branca” e superior, como os judeus. O então ministro do Interior, Wilhelm Frick, utilizou o conceito para discriminar pessoas consideradas negras.
Fundamentadas nos zoológicos humanos de décadas passadas, as exposições itinerantes chamadas “Deutsche Afrika Schau” (Mostra Alemã da África) reproduziam estereótipos da época colonial. Elaboradas pela togolês residente na Alemanha, Kassi Bruce, entre 1937 e 1940, elas representavam uma fonte de renda para os cidadãos negros, ainda que sob rigoroso controle do regime.
A participação negra nos filmes de propaganda também era estereotipada, sempre no papel de servos, refletindo também as expectativas dos nazistas de reconquistar territórios perdidos na África.
Inspirada na pioneira May Ayim.
A antologia de 1986, *Farbe bekennen* (“Assumir a cor”, posteriormente publicada em inglês como *Showing our colors. Mulheres afro-alemãs se manifestam), da poeta, educadora e ativista afro-alemã May Ayim (1960-1996), marca um momento crucial para a vivência negra na Alemanha e o feminismo interseccional, unindo análise histórica, entrevistas, relatos individuais e poesia.
Katharina Oguntoye, que integrou a produção de Farbe bekennen, continua essa investigação histórica, reunindo relatos de resistência e perseverança de alemães negros durante a era nazista. estabeleceu contato com a cantora política Fasia Jansen, o ator Theodor Wonja Michael e o jornalista Hans Massaquoi.
Apesar de ter nascido 14 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, com mãe alemã branca e pai nigeriano, Oguntoye acredita que sua identidade lhe permite compartilhar tais histórias: “Raramente alguém realiza essa pesquisa, há apenas dois ou três outros acadêmicos que estudam pessoas negras durante os tempos nazistas.”
Para ela, permanece subestimada a presença e a contribuição de pessoas negras na Alemanha. Por exemplo: muitos só ficaram sabendo da existência do pioneiro Anton Wilhelm Amo (1703-1759) – primeiro afrodescendente a se doutorar em uma universidade europeia – quando uma rua berlinense recebeu seu nome, em 2021.
Superar a vitimização.
Atualmente, outros afro-alemães estão recebendo maior destaque em Berlim, por meio de placas comemorativas em espaços públicos. Em Colónia, foi inaugurada em 2022 a Biblioteca Theodor Wonja Michael (1925-2019), que abriga histórias negras e estudos sobre identidade, raça e cultura. A criação da instituição foi inspirada, em parte, pelo lançamento de “Meu pai era alemão”, relato direto de Michael sobre sua vida na Alemanha do século XX.
Uma outra medida positiva seria abordar de forma mais intensa nos currículos escolares a contribuição negra: “é bom transmiti-la através de biografias; histórias de vida, pois essa é a forma mais fácil de lembrar das pessoas”.
No entanto, a busca por reconhecimento e aceitação ainda não se encerrou, e as novas gerações se deparam com uma sociedade com viés político cada vez mais à direita.
Sophie Osen Akhibi, da associação alemã Rede Acadêmica Afrodiaspórica (Adan), fundada em 2014, destaca a importância de identificar locais onde é possível exercer influência para promover mudanças culturais.
Não auxiliará permanecer no modo de vítima e reclamar, em vez de aspirar às profissões e poder para sermos incluídas na mesa de tomada de decisões ou, caso contrário, construirmos a nossa própria.
Através da Adan, Akhibi e seus colegas, busca-se que os tomadores de decisão compreendam as realidades enfrentadas pelos imigrantes e minorias, e as abordem.
Fonte: Carta Capital