Espanha receberá o Fórum Mundial da Ayahuasca, com destaque para a participação de povos indígenas
O ativista indigenista Jairo Lima lançou, em um evento, uma plataforma pública para receber denúncias, compartilhar informações e garantir a proteção de conhecimentos.

“Vai cair cabelo de pesquisador” foi a frase do indigenista Jairo Lima que provocou risos incômodos na terceira edição do Festival Indígena União dos Povos (Fiup), em Arujá (SP), em maio de 2025. Contudo, o tom era de alerta. Diante de uma mesa com representantes das lideranças dos povos originários, a plateia compreendeu que a declaração não era uma bravata: era uma denúncia, com informações precisas, incluindo CPF e CNPJ.
Com mais de 30 anos de experiência no indigenismo, Lima conhece a fundo os caminhos, desvios e dificuldades da expansão global da ayahuasca. Músico, sócio da Sananga Records e conselheiro sênior do Instituto Yorenka Tasorentsi – presidido por seu amigo de longa data, o líder Ashaninka Benki Piyãko –, ele abordou o tema com franco discurso sobre a necessidade de proteger as medicinas tradicionais frente ao avanço de interesses farmacêuticos, aos usos descontextualizados e à apropriação indevida de saberes milenares.
As declarações do indigenista no Fiup refletiram conteúdos de outra disputa. Destacando uma narrativa coletiva que remonta a décadas, Lima enfatizou os acontecimentos gerados pelas Conferências Indígenas da Ayahuasca – das quais participa desde a primeira –, e ressaltou que não se tratam de simples atos cerimoniais.
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A cada conferência, a carta não é apenas um documento. É o resultado de agendas aprofundadas, elaboradas por lideranças espirituais, representantes de bioculturas e povos originários, com implicações práticas definidas. A próxima já possui destino e data estabelecidos: 2027, na Aldeia Sagrada do povo Yawanawá.
Expansão global
O movimento continua fortalecido e expandindo-se globalmente, conforme afirma o indigenista. Antes da próxima conferência, prevista para 2027 em Putumayo, na Colômbia, ocorrerá o primeiro encontro do Conselho de Líderes Espirituais Indígenas, anunciado por Lima como um dos principais resultados da conferência deste ano. Trata-se de um novo órgão jurídico e político – “uma espécie de ONU espiritual”, define –, voltado, segundo ele, à proteção das medicinas sagradas e à articulação entre povos e continentes.
Lima também evidenciou um dos movimentos mais ousados da história contemporânea das medicinas alternativas: o Fórum Mundial da Ayahuasca, que ocorrerá entre 10 e 13 de setembro de 2026, em Girona, na Espanha. Organizado pelo Instituto Yorenka em colaboração com o Iceers (sigla em inglês para Centro Internacional de Educação, Pesquisa e Serviço Etnobotânico), o encontro visa reunir, pela primeira vez, representantes das principais plantas psicodélicas empregadas por povos indígenas em diversas regiões do mundo.
Houve presente ali delegações não apenas do universo ayahuasino, mas também representantes do peiote, da iboga e dos cogumelos. A intenção é promover, em nível científico, cultural e espiritual, um amplo debate sobre os desdobramentos da expansão global dessas práticas ancestrais.
Plataforma de escuta e denúncia.
Até chegar na Espanha, há muito a ser feito, ressaltou Lima. Um dos passos mais ousados anunciados pelo indigenista é a criação de uma plataforma digital de diácom os povos tradicionais, voltada tanto à escuta quanto à denúncia. Nela, qualquer pessoa poderá relatar abusos envolvendo a ayahuasca — mais práticas, uso indevido por empresas, violência ou charlatanismo. Também servirá como canal de consulta e acesso público às reflexões e palestras das conferências. “Até agora, guardávamos tudo a sete chaves. Isso vai mudar”, garantiu.
Estão previstos para serem disponibilizados discussões sobre o emprego inadequado de músicas indígenas, solicitações de patentes, investigações não autorizadas e testes farmacêuticos. Lima mencionou, sem identificar instituições, que algumas estariam desenvolvendo uma “pílula de ayahuasca” no Canadá – a partir de material genético extraído da floresta brasileira – sem qualquer consulta ou autorização dos povos de origem. “Vamos dar nome e CNPJ. E se preparem, porque haverá muitos pesquisadores constrangidos”.
Os dados que sustentam essas afirmações não são especulações. Ele apontou que, entre a 4ª Conferência (em 2022) e a atual (2025), um estudo internacional identificou o uso oficial da ayahuasca em locais não indígenas: 1,48 milhão de pessoas, nos Estados Unidos, consumiram pelo menos uma dose entre 2020 e 2024; na Europa, foram 780 mil; e, na América do Sul – berço da ayahuasca – 980 mil. “Também mapeamos quantas pessoas foram hospitalizadas, quantas tiveram episódios psicóticos ou foram detidas. Esse é o tipo de estudo que converte experiência em conhecimento público.”
Território estratégico
Em declarações de Lima, o Acre se apresenta como território estratégico. Uma proposta de lei, elaborada ao longo de oito anos por lideranças indígenas em colaboração com juristas, será submetida à Assembleia Legislativa do estado, conforme anunciado pelo governado durante a 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca, realizada em janeiro deste ano, na Aldeia Sagrada, Território Indígena Rio Gregório, território do povo Yawanawá.
A proposta estabelece um arcabouço jurídico para a salvaguarda das práticas medicinais indígenas tradicionais – uma demanda histórica que poderá conferir à região amazônica pioneirismo em legislação específica sobre o assunto.
Essas iniciativas se articulam com outro eixo crítico: a questão genética. Segundo Lima, existem atualmente mais de 500 pedidos de patente relacionados aos conhecimentos associados à ayahuasca e seus princípios ativos. “As lideranças indígenas envolvidas no processo e seus colaboradores estão discutindo isso com o governo, com advogados do Brasil e do exterior. É preciso garantir proteção legal e soberania biocultural.”
Não é somente de leis e dados que se constrói essa mobilização. Há, também, o trabalho de escuta e orientação. “Hoje, se você quer beber ayahuasca no Brasil, como saber onde ir sem cair numa roubada?”, provocou Lima. A resposta passa pela articulação do Conselho de Líderes Espirituais, cuja criação foi aprovada na conferência deste ano e que, entre outras pautas, deverá indicar centros e pessoas reconhecidas por seu trabalho ético e responsável. “Gente reconhecida por esses líderes e suas comunidades, que conhecemos, que age com clareza, que está comprometida com os princípios.”
Aliança das medicinas
É um movimento que, segundo o indigenista, está atravessando fronteiras e se unindo. Literalmente. Em sua última viagem ao México, visitou lideranças locais envolvidas também nas conferências indígenas no Acre, embora fossem de outra cultura vegetal (a do peiote), onde fortaleceu o esforço dos líderes indígenas brasileiros pela formação de uma aliança global das medicinas sagradas.
Lima relata que, apesar dos povos indígenas mexicanos utilizarem outras práticas medicinais, como o peiote e o sapo bufo, eles também empregam a ayahuasca no tratamento da dependência química. “Eles fazem parte dessa rede que estamos construindo desde 2019, com representantes indígenas do Canadá ao Peru.”
Os líderes deste movimento, como Benki Ashaninka, advertem que atingimos um momento em que é necessário identificar os problemas. A situação está excessiva. Há muitas pessoas combinando ayahuasca com outras substâncias e utilizando o nome dos povos indígenas para fraudar. Isso é sério. É perigoso. E é por isso que esse movimento está ganhando tanta força.
O perspectivista não se manifestou unicamente como indivíduo. Expressou-se como uma ligação — um elo entre realidades que se encontram, por vezes com respeito, outras com falta de conhecimento. Mais do que uma acusação, seu discurso foi um chamado: que a expansão da ayahuasca não ocorra de forma independente de seus protetores, mas em diácom aqueles que a sustentam, no corpo e na memória, o espírito da mata.
Lima proferiu considerações na discussão “Exploração das Tradições Indígenas – Apropriação Cultural e o Uso da Ayahuasca em Contexto Urbano”, conduzida pela jornalista Caroline Apple, com a presença de Ninawa Pai da Mata, Daiara Tukano, Makairy Fulni-ô e Rasu Yawanawá.
O jornalista Carlos Minuano viajou a Arujá a convite do Fiup (Festival Indígena União dos Povos). A reportagem teve o apoio do centro LIS – Lar e Integração do Ser, centro de vegetalismo pioneiro no Brasil, dedicado a práticas rituais originárias do Alto Amazonas peruano.
Fonte: Carta Capital