Racismo não é um mal-entendido, é uma decisão política e uma questão de poder

Camila Panizzi Luz discorre sobre o racismo estrutural da brancura e promove a solidariedade da benevolência.

06/05/2025 11h39

4 min de leitura

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(Imagem de reprodução da internet).

Era uma mesa de literatura. Refletia uma celebração do encontro. Observou-se a repetição de um gesto antigo, colonizador, disfarçado de espontaneidade e ocultado da curiosidade. Em 2025, uma mulher branca de 33 anos, com alto capital simbólico e social, ainda busca uma estética que considera legítima somente quando associada à marginalidade. Não se trata de desconhecimento. Não é distração. É um projeto. É racismo.

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A escritora Camila Panizzi Luz, ao manifestar seu escárnio com a frase “nunca foi presa, mas agora sou da sociedade, né?”, ao tentar se integrar ao Coletivo Neomarginais – coletivo de escritores das margens urbanas – expôs o vício colonial ainda presente na branquitude: a de se considerar central, mesmo ao se aproximar do desconhecido. Ao convidar o autor Wesley Barbosa ao palco, não o ouviu; buscou, na verdade, utilizá-lo como plataforma para uma solidariedade já corrompida pela condescendência.

A branquitude brasileira – particularmente aquela que se declara progressista, culta e sensível – necessita de uma reflexão urgente. A escravidão não foi um mero evento histórico, mas sim uma política estatal. Seus efeitos não são névoa do passado, mas sim estruturas que continuam a influenciar o presente. Relacionar homens negros à prisão, mesmo como “piada”, é perpetuar os códigos dessa lógica escravocrata. É reforçar o pacto narcisista da branquitude com a violência e com o monopólio do valor humano.

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O Brasil não é mais um país em processo de aprendizado sobre racismo. Ele é, sim, um país de resistências conscientes e de violências igualmente conscientes. Quem, em 2025, ainda se diz “aprendendo” sobre racismo, está, na verdade, escolhendo não saber. Porque saber exige revisão de privilégios. E rever privilégios significa ceder poder. Camila não escorregou. Ela exerceu. Ela se sentou no trono da soberba, usou o microfone como cetro e praticou, ali mesmo, no palco, a velha pedagogia da dominação: calar o outro sob o pretexto de incluí-lo.

Não há mais espaço para o eufemismo. A naturalização da prisão como identidade possível para pessoas negras é uma das mais violentas expressões do racismo estrutural brasileiro. Reduzir a potência de uma literatura — que nasce da dor, da insubmissão e da afirmação política — a uma piada de palco é não apenas insensível, é criminoso. A escritora se diz mal interpretada. Mas não há outra interpretação possível quando o estereótipo é evocado com tanta precisão. Não é equívoco. É a escolha.

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A reação do Flipoços foi imediata e decisa: removeu a autora da programação, coletou seus livros, divulgou nota oficial e manifestou apoio público a Wesley Barbosa e ao Coletivo Neomarginais. Trata-se de uma medida mínima diante do dano simbólico provocado. Contudo, foi necessária. Pois já passou do tempo de instituições culturais deixarem de relativizar a violência quando ela se apresenta com aparência limpa e sorriso. É preciso identificar: o que ocorreu foi racismo. E, ademais, foi um exercício de poder. De um poder que só se sustenta enquanto alguém for mantido por baixo.

Camila justificou que sempre “abriu espaço para outras vozes”. Contudo, a questão que persiste é: qual o tipo de espaço que ainda precisa ser “cedido”? E por que a voz negra só é admitida quando confirmada por uma curadoria branca? Não se trata de abrir espaço. Trata-se de desviar o caminho.

A literatura não é demonstração de virtude. A literatura é ferramenta de memória e de ruptura. Quando uma autora se utiliza da estrutura existente para perpetuar os moldes simbólicos que buscamos desconstruir há séculos, ela não está sendo ingênua. Estaria sendo cúmplice.

Wesley Barbosa foi além do desrespeito. Foi violado pela sua representação: a insurgência de uma voz que não necessita da validação de um grupo dominante. O incômodo gerado não se originou da sua fala, mas do próprio seu existir. Essa é a maior ofensa para aqueles que ainda acreditam que o ponto central do universo deve refletir sua imagem.

O caso do Flipoços exige que se avance além do cancelamento. É necessário transformar a denúncia em um ponto de virada. Que os festivais literários do futuro não tenham apenas mesas inclusivas, mas estruturas que reconheçam o racismo como uma escolha ideológica e o combatam como tal. Que escritores negros não sejam mais tolerados como exceção folclórica, mas reconhecidos como parte essencial e indispensável da literatura brasileira.

A branqueza, por fim, deixe de se portar como marginalizada com a liberdade que possui: a de rir, permanecer imune e retornar para casa sem restrições físicas ou simbólicas.

Fonte: Metrópoles

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